Ponte da Crimeia: irritado, Putin ordena ataques contra alvos civis

Análise de Clara Ferreira Marques (*) / Bloomberg

As pontes são símbolos políticos potentes, e poucos mais do que a ligação de 19 quilômetros através do Estreito de Kerch que liga a Rússia à Crimeia anexada, uma façanha de engenharia rebitada com significado estratégico e de propaganda. Quando ele atravessou em 2018 em um caminhão laranja brilhante, bandeiras russas tremulando, Vladimir Putin chamou de milagre. Foi um projeto, o porta-voz do Kremlin fez questão de dizer aos repórteres, que o próprio presidente iniciou. No ano seguinte, voltou para inaugurar o trecho ferroviário, andando na cabine do trem para as câmeras.

E, no entanto, logo após uma explosão espetacular no início do sábado que danificou gravemente a ponte, Putin e outros altos funcionários ficaram em silêncio. Mesmo os propagandistas mais barulhentos de Moscou – como a chefe da RT Margarita Simonyan, que inicialmente tuitou apenas uma palavra – foram reticentes. A reação oficial não surgiu até domingo, com Putin rotulando a explosão de “ataque terrorista” em um breve comentário. Então, após um início em Zaporizhzhia, alertas de ataque aéreo se espalharam pela Ucrânia; A segunda-feira amanheceu com explosões no coração de Kyiv.

Tem sido uma expressão eloquente da frustração e pressão no topo. Enquanto Putin luta para lidar com o constrangimento do ataque à ponte e outros reveses militares, ele também está tentando reprimir as críticas de vozes altas com uma demonstração, para a multidão local e o resto, do poderio militar da Rússia – para que ninguém esqueça. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, descreveu na segunda-feira ataques de retaliação generalizados a instalações de energia e alvos civis, em um momento e locais “especialmente escolhidos para causar o máximo de dano possível”.

Kyiv não reivindicou explicitamente a responsabilidade pela bola de fogo de Kerch, mas emitiu selos comemorativos incisivamente, enquanto o secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional twittou imagens da explosão ao lado de Marilyn Monroe cantando “Feliz aniversário, senhor presidente”.

Mais do que um golpe pessoal em Putin, o ataque à ponte é uma falha estratégica e de segurança, dada a obviedade da ponte como um alvo, e quão enfaticamente a mídia russa havia relatado sobre a proteção em várias camadas supostamente em vigor. Mesmo os infames golfinhos treinados, uma prometida “cúpula” protetora e barcos anti-sabotagem foram incapazes de impedir a interrupção de uma linha de abastecimento crucial para as forças armadas. E é, como Kyiv colocou, apenas o começo – um lembrete de quão difícil será para Moscou manter a terra que conquistou.

Então, onde estava Putin durante grande parte do fim de semana? Afinal, em julho, o ex-presidente e super-falcão Dmitry Medvedev havia ameaçado uma resposta do “Dia do Julgamento” a qualquer ataque à Crimeia; este não é nem o primeiro – uma base aérea foi seriamente danificada durante um ataque durante o verão.

O silêncio tem sido a reação padrão de Putin a situações que ele sente que estão saindo do controle, quando um patriarca supostamente todo-poderoso é incapaz de encontrar uma solução óbvia e tropeça. Depois que o submarino Kursk afundou no primeiro ano de sua presidência, ele ficou mudo por dias. Duas décadas depois, quando o Covid-19 começou a varrer a Rússia, ele também desapareceu da vista do público – escondendo-se do vírus e da culpa por quaisquer erros. E aqui estamos nós novamente.

Não importa a famosa história que Putin gosta de contar sobre perseguir um rato no corredor de seu apartamento em Leningrado. Quando encurralado, o animal saltou e o atacou, supostamente uma lição de vida sobre como terminar uma briga. Aqui, o líder russo fez o que, na realidade, ele faz com muito mais frequência – ele está tentando evitar ser empurrado para um canto, demonstrando que ainda tem alternativas.

Ele agiu em retaliação, para silenciar vozes cada vez mais altas como a do líder checheno Ramzan Kadyrov e do chefe mercenário Yevgeny Prigozhin, mas também para demonstrar opções, incluindo as brutais, como ataques a alvos civis. A referência específica à explosão da ponte como um ato de “terrorismo” é em parte para diminuí-lo, mesmo quando a mídia estatal se alinha para minimizar os danos reais. Mas assim como as explosões em prédios de apartamentos russos que levaram à segunda guerra chechena foram usadas para tentar legitimar a brutalidade, Putin está tentando justificar uma resposta assimétrica desumana. Perturbadoramente, a Rússia acaba de nomear o general da Força Aérea Sergei Surovikin como comandante de suas forças de invasão na Ucrânia, um homem que liderou as forças russas na Síria e tem uma reputação de crueldade. Ele rapidamente recebeu um endosso de Kadyrov, que também se declarou “satisfeito” com a direção dos acontecimentos na Ucrânia.

O atraso também nos diz, no entanto, que Putin foi pego de surpresa. Tendo tomado a decisão politicamente arriscada de partir para a mobilização, mesmo que parcial, ele se viu humilhado por uma força ucraniana capaz de realizar um ataque que, como Mick Ryan, estrategista e general aposentado do Exército Australiano, me apontou, é um desafio tanto do ponto de vista de segurança quanto tecnicamente. E a Ucrânia aprenderá com isso. Kyiv não tornará fácil para Moscou manter os territórios que conquistou.

O Kremlin ainda não está sem opções. Armas nucleares táticas, apesar de todas as ameaças, continuam sendo difíceis para Moscou implantar e provavelmente não resolveriam nem os problemas políticos nem estratégicos e militares de Putin. Mas ele já usou outras alternativas antes. A ênfase na ponte como alvo de infraestrutura crítica sugere que é onde Moscou se concentrará. As infraestruturas energéticas europeias já estão sob ataque e é provável que venham mais. Ryan sugere que a retaliação também pode incluir ataques cibernéticos a países que apoiam a Ucrânia e sabotagem secreta em áreas até mesmo além da fronteira onde a ajuda estrangeira está sendo coletada.

No entanto, como ele aponta e a Rússia descobriu, as vulnerabilidades acontecem nos dois sentidos.

Clara Ferreira Marques é colunista da Bloomberg Opinion e membro do conselho editorial que cobre assuntos externos e clima. Anteriormente, ela trabalhou para a Reuters em Hong Kong, Cingapura, Índia, Reino Unido, Itália e Rússia.

FONTE: Washington Post