O papel da tecnologia na guerra e na paz
JOSÉ GOLDEMBERG
É comum atribuir a líderes todo o mérito de vencer batalhas na guerra ou enfrentar grandes desafios em tempos de paz. Na guerra são sempre citadas as vitórias de Alexandre, o Grande – que jamais perdeu uma batalha –, Júlio César, que conquistou a Europa, Napoleão Bonaparte, Winston Churchill e, mais recentemente, o marechal Zhukov, que derrotou o Exército nazista. Na paz são lembrados, usualmente, Thomas Edison, que desenvolveu o uso da energia elétrica, Graham Bell, a telefonia, e Steve Jobs e Bill Gates, na era da informática.
Não existe a menor dúvida de que todos eles foram pessoas de grande talento e criatividade, mas o que se esquece com frequência é que não realizaram seus grandes feitos sem o uso de técnicos e da tecnologia, essencial para seu sucesso.
O historiador Paul Kennedy, em livro publicado recentemente, Engenheiros da Vitória, tenta corrigir essa visão usando exemplos do que ocorreu na 2.ª Guerra Mundial (1939-1945). Ele chama a atenção para o fato de que sem a descoberta do radar a Inglaterra não teria conseguido resistir aos bombardeios da aviação alemã e à invasão subsequente de seu território. Tampouco os russos teriam vencido as grandes batalhas que expulsaram os alemães do seu território sem o aperfeiçoamento de seus tanques de guerra T-34; ou sem seus engenheiros militares capazes de construir pontes para a travessia de rios de mais de um quilômetro de largura em quatro ou cinco horas.
Em tempos de paz, Paul Kennedy aponta alguns exemplos interessantes, argumentando que Steve Jobs não inventou nenhuma máquina, mas juntou desenvolvimentos técnicos feitos por outros num produto compacto e fácil de usar (o computador pessoal) que mudou o mundo. Sua genialidade – como a de Alexandre, o Grande, na guerra – foi a de reunir e comandar técnicos (ou soldados) e fazer bom uso da tecnologia disponível.
Thomas Edison só conseguiu produzir eletricidade usando os conhecimentos desenvolvidos por Michael Faraday, que em 1831 descobriu o princípio por trás do gerador de eletricidade no porão da Academia Real de Ciências da Inglaterra. Henry Ford também não inventou o automóvel, mas sim o método de produzi-lo em massa, passando de produção artesanal para produção em série.
É salutar lembrar esses fatos numa época em que influentes economistas americanos questionam o papel que as pesquisas subvencionadas pelo governo temem estimular o sucesso da indústria americana. Vários desses economistas citam frequentemente Steve Jobs e Bill Gates como empreendedores de grande sucesso que desenvolveram produtos numa garagem sem nenhum auxílio governamental. Acontece que computadores pessoais, informática e telecomunicações modernas em geral, como internet, telefones celulares, GPS, etc., não existiriam sem a invenção de transistores, em 1947, em laboratórios de pesquisas financiados direta ou indiretamente pelo governo dos Estados Unidos.
Além disso, existem nesse país entidades filantrópicas, como a Fundação Rockefeller e muitas outras – incluída aí a maior delas, criada recentemente por Bill Gates –, que financiam generosamente pesquisas e investimentos de risco. Os recursos dessas fundações se originam em dinheiro que normalmente seria recolhido pelo Imposto de Renda e que as leis americanas permitem que seja utilizado pelos próprios donos por meio de tais instituições. É uma espécie de Lei Rouanet que funciona extraordinariamente bem num país onde existem muitas grandes fortunas. O imposto sobre heranças chega a atingir 40% nos Estados Unidos.
A pergunta a fazer é: por que esses mecanismos que acabaram por produzir inovações, aumento de produtividade e empresários como Bill Gates não existem no Brasil?
Há muitas pessoas talentosas no nosso país e algumas de nossas escolas e universidades dão um treinamento que não é inferior ao de muitas de suas congêneres americanas. Além disso, o Brasil dispõe de um sistema bastante satisfatório de bolsas que permite enviar estudantes para estudos e aperfeiçoamento no exterior, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Mais ainda, o BNDES e a Finep, como a Fapesp, em São Paulo, têm esquemas abrangentes de financiamento de pesquisa para empresas.
O que sucede é que esse conjunto de instrumentos do governo brasileiro não está coordenado com as políticas macroeconômicas do Ministério da Fazenda e as ações do Ministério de Indústria e Comércio. São essas pastas ministeriais que fixam a taxa de câmbio e as tarifas aduaneiras cuja aplicação pode beneficiar ou arruinar todo um setor industrial.
Exemplo disso é o que ocorreu na época em que a importação de computadores foi rigidamente controlada pelo governo para estimular sua produção dentro do País, o que se revelou inviável. O resultado foi a destruição do setor de tecelagem, que não podia importar teares modernos comandados por computadores.
Outro exemplo é o programa de etanol de cana-de-açúcar, que atingiu elevado nível de eficiência usando tecnologia local, mas está sendo destruído pelos preços baixos da gasolina, que são administrados pelo governo para evitar o aumento da inflação. Na prática, o Brasil importa gasolina (ou petróleo) a preços internacionais e a vende a preços mais baixos, o que é, no mínimo, um contrassenso.
Não faltam talentos e competências nas universidades que poderiam suprir o pessoal e a tecnologia necessários para grandes avanços. Faltam políticas públicas que identifiquem os problemas e levem à implementação de soluções.
PROFESSOR EMÉRITO E EX-REITOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), FOI SECRETÁRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
FONTE: Estadão
As palavras são bonitas! Mas e a prática? O emérito professor bem que poderia escrever uma “cartinha aberta à nação”, sobre este assunto. Quem sabe chegaria aos olhos miúdos da “presidenta”.