EUA têm poder avassalador na guerra da informação, diz professor
O renomado professor no Instituto de Altos Estudos de Segurança e Justiça (INHESJ), e na Universidade de Paris 10, Nicolas Arpagian analisa os mecanismos da espionagem globalizada e, sobretudo, a supremacia absoluta dos Estados Unidos no campo das tecnologias da informação. Arpagian é , especialista reconhecido em temas de cyber-segurança e segurança militar moderna e deu entrevista à Carta Maior, publicada nesta quarta-feira (21).
A proteção dos dados pessoais e a democracia não são bons aliados. O caso de Edward Snowden, o agenda da NSA norte-americana que revelou a espionagem dos Estados Unidos e a colaboração de atores privados do porte de Google, Microsoft ou Facebook, segue expandindo suas verdades e mostrando os limites dos sistemas democráticos.
Espionagem global dos indivíduos por meio do sistema Prisma, detenção, em Londres, do companheiro do jornalista do Guardian que revelou os documentos de Snowden, Glenn Greenwald, destruição forçada dos discos rígidos do Guardian por parte dos serviços secretos britânicos, intimidações, ameaças, em suma, as democracias tiraram do armário seus melhores dispositivos legais para justificar a espionagem ou impedir a difusão de informações suplementares.
Em entrevista à Carta Maior, Nicolas Arpagian analisa os mecanismos desta espionagem globalizada, seus instrumentos legais, características modernas, seus meandros tecnológicos, o conceito de guerra moderna e, sobretudo, a supremacia absoluta dos Estados Unidos no campo das tecnologias da informação.
Professor no Instituto de Altos Estudos de Segurança e Justiça (INHESJ), e na Universidade de Paris 10, especialista reconhecido em temas de cyber-segurança e segurança militar moderna, Nicolas Arpagian é também autor de vários ensaios sobre as tecnologias da informação: “A Cyber-segurança”, “A Cyber-guerra, a guerra digital começou”, “Segurança privada, disputa pública”, “O Estado, o medo e o cidadão”.
Carta Maior – Em que se caracteriza a espionagem moderna e como a praticam hoje, de modo geral, a NSA norte-americana por meio do dispositivo Prisma?
Nicolas Arpagian – A ideia consiste em associar as indústrias da tecnologia da informação, ou seja, Microsoft, Yahoo, Google ou Facebook, com a segurança nacional dos Estados Unidos. Estamos diante de mutuários privados que exploram e que, para empregar uma terminologia petroleira, refinam as informações particulares de pessoas e de empresas. Em resumo, tudo o que confiamos hoje à internet. Para captar o alcance de tudo isso é preciso levar em conta o fato de que mesmo as administrações públicas europeias recorrem ao uso de gmail para se comunicar. A administração norte-americana exige então desses atores privados que lhe entreguem informação sob a égide das autoridades.
O curioso neste caso reside no fato de que o dispositivo de espionagem Prisma é legal.
Sim, de fato. O Prisma deriva de uma lei adotada em um país democrático como os Estados Unidos. Mas claro, não é novo. Desde os anos 60, os Estados Unidos, de uma maneira ou outra, leva a cabo estas práticas. Com o Prisma se oficializou e se estruturou um mecanismo através do qual as empresas devem obedecer a decisões legais. Este dado é chave porque a nacionalidade da empresa envolvida tem uma importância capital. Aqui precisamos entender bem o que significa uma empresa global que responde, no entanto, a regras nacionais. Uma empresa, seja qual for o seu tamanho, seja ou não uma multinacional, assume o fato de que pertence a uma nacionalidade. Por exemplo, a lei norte-americana se aplica às empresas cujo capital majoritário, ou seja, 51%, está em mãos norte-americanas, e isso seja qual for sua localização.
Assim, a filial francesa ou argentina da IBM, do Google ou da Microsoft estão submetidas ao direito dos EUA a partir do momento que seu acionista principal é de nacionalidade norte-americana. Isso põe em questão a ideia de direito internacional porque os norte-americanos conseguiram que seu direito doméstico seja aplicado para além de suas fronteiras. A situação é paradoxal porque, ao mesmo tempo em que empresas como Google, Facebook, Microsoft ou Yahoo vivem da confiança de seus clientes também estão sob a autoridade de um Estado que lhes pede satisfação.
Todos esses dispositivos respondem, porém, a uma forma de guerra. Talvez não haja bombas – ainda que existam os drones -, mas há sim uma estratégia agressiva de penetração de territórios e de coleta de informação.
Efetivamente. Esses dispositivos fazem parte do conceito de soberania nacional. E aqui é preciso ampliar, enriquecer, a noção de guerra mais além do enfrentamento armado. Aqui se agrega também uma lógica de competição econômica. A informação coleta por meio de empresas como Yahoo, Google, Facebook ou Microsoft nos leva muito mais além do horizonte militar para desembocar na pesquisa de informações econômicas. Estamos então em um campo ampliado da guerra apoiado em uma lógica de segurança nacional. Todas as informações são úteis: as econômicas, as políticas e as militares. A particularidade do uso ofensivo das tecnologias da informação reside em que não se estabelece mais a diferença entre o mundo civil e o mundo militar. Nosso aliado político e militar é também nosso inimigo ou nosso competidor econômico.
Os Estados empregam as tecnologias da informação para consolidar seus tecidos econômicos. Além disso, hoje existem sistemas capazes de tratar o conjunto dessas informações e, com certeza, de explorá-las. O elemento determinante para tratar essa massa de informações, ou seja, o chamado Big Data, é o filtro que se empregará para dirigi-las para a rota que se desejar. Isso explica por que empresas como o Google trabalham com muitos linguistas para saber quais são as expressões que as pessoas utilizam mais comumente. Os avanços são tais que o Google é capaz de estabelecer a diferença entre uma pessoa que busca a palavra “jaguar” porque está interessada nos animais, e outra que busca a mesma palavra, mas é um aficionado por automóveis. E neste campo os Estados Unidos detém um poder avassalador porque a maioria dos atores centrais das tecnologias da informação está em sua zona de influência. Os demais países estão em desvantagem.
A mola desta estratégia é a sacrossanta luta contra o terrorismo.
Este argumento é o mais utilizado porque é o que exige menos explicações e permite a instauração de um regime exorbitante de direito comum que permite sair das regras estabelecidas. A luta contra o terrorismo é o espantalho, é a justificação suprema. Quando vemos a amplitude da espionagem nos damos conta de que esse argumento não basta. Quando se espiona particulares que não têm nenhuma relação com o terrorismo o argumento deixa de ser verossímil.
Estamos de fato diante de uma potência colossal. Os Estados Unidos detêm um poder inigualável na história da humanidade.
Na verdade, a potência norte-americana corresponde exatamente a tudo o que confiamos a esta sociedade da informação: confiamos nossos entretenimentos, nossos processos industriais e econômicos, nossos correios e partes inteiras da organização de nossa vida pessoal, profissional e coletiva. Neste contexto, quem detiver o poder neste campo é o dono do jogo.
Os Estados Unidos souberam criar uma série de atores econômicos que se tornaram indispensáveis. O Google, por exemplo, é um ator em escala planetária que nos segue por todas as partes e a cada momento. Um exemplo: por meio de análise exaustiva de nossas correspondências chega-se a uma visão extremamente precisa dos centros de interesse de um indivíduo e de suas orientações. Esses atores têm uma relação de proximidade com a administração norte-americana.
Nisso reside o extraordinário poder dos EUA. Não há dúvida alguma então de que, mediante o controle das tecnologias da informação, os Estados Unidos contam com um elemento de poder considerável. Esse poder é, ao mesmo tempo, político, diplomático, militar e tecnológico porque, justamente, todas as tecnologias da informação tem um lugar preponderante nos sistemas de organização dos demais países. Mas quem comanda essas tecnologias é Washington. Além dos investimentos públicos do governo, os norte-americanos podem ser apoiar nas empresas privadas de seu país. Hoje não há nenhum poder equivalente a este em escala planetária.
E a Europa? Os europeus não são mais que meros figurantes desta dança, são simples clientes do sistema norte-americano, no mesmo nível que qualquer outro país, rico ou pobre, desenvolvido ou não.
Os europeus não puderam ou não souberam desenvolver atores de grande dimensão no campo das tecnologias da informação. A Europa, por facilidade ou conforto, se viu como simples usuária das soluções norte-americanas.
A França, por exemplo, sabe fabricar submarinos nucleares, aviões de caça e tanques, mas não tem presença nas tecnologias da informação. No entanto, essas tecnologias são essenciais porque irrigam todos os setores. Isso nos demonstra que o poder não está onde pensávamos, ou seja, nas mãos de quem sabe construir equipes, mas sim no campo da informação.
Se os sistemas de informação que controlam as armas modernas não funcionam, ou funcionam com tecnologias inadequadas, esse ator se torna um gigante imóvel: toda a força acumulada não lhe serve para nada porque o sistema nervoso responde de forma aleatória.
Apesar do enorme escândalo de espionagem, e do que isso significa em termos de violação das liberdades e dos direitos civis, o mundo segue igual. Os usuários parecem ter se resignado a que suas vidas passem pela radiografia de um grande espião universal.
É isso mesmo. Não se constata nenhuma mudança, nenhuma mobilização dos usuários, não há queda de audiência no Google ou no Facebook. A opinião pública parece ter assimilado e aceito a espionagem. A resposta ao escândalo tem sido a passividade. Não se vê hoje uma resposta organizada. No entanto, para os Estados Unidos o golpe é duro porque não foi um inimigo exterior que lhe desferiu um golpe, mas sim um de seus próprios agentes, Snowden. Em um universo eminentemente tecnológico, Snowden agregou uma dimensão emocional imprevista a este nível de coleta de informação estratégica.
Nicolas Arpagian é professor no Instituto de Altos Estudos de Segurança e Justiça (INHESJ), e na Universidade de Paris 10, especialista reconhecido em temas de cyber-segurança e segurança militar moderna
FONTE: Portal Vermelho