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Rodolfo Laterza [1]

Ricardo Cabral [2]

1 – Introdução

Em 26 de julho de 2023, o general Moussa Salao Barmou, comandante da Guarda Presidencial no Níger lançou um golpe e isolou o palácio presidencial em Niamey, mantendo como refém o presidente democraticamente eleito do Níger, deteve o presidente Mohamed Bazoum e sua família.

Oficiais superiores de vários ramos das forças de defesa e segurança (FDS) formaram uma junta, nomeada Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP), e anunciaram a tomada do poder numa emissão televisiva.

A resposta pública variou, com as manifestações iniciais de apoio à Bazoum sendo dispersadas pelos soldados amotinados, seguidas de manifestações subsequentes de apoio ao CNSP. Em 27 de julho, as Forças Armadas do Níger se juntaram ao CNSP, citando sua intenção de evitar confrontos letais e proteger o presidente e sua família.

Apresentando-se como o Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria (CNSP), os militares golpistas declararam o fim do regime de Bazoum e anunciaram a suspensão de todas as instituições, o toque de recolher e o fechamento das fronteiras terrestres e aéreas do país. Finalmente, a junta garantiu que salvaguardaria os compromissos internacionais do Níger, mas exigiu que as potências externas se abstenham de ingerência.

Embora afirmem que suas ações foram motivadas pela “contínua deterioração da situação de segurança” e pela “má governança econômica e social”, os especialistas sugerem que o plano do presidente Bazoum de destituir o chefe da guarda presidencial, general Omar Tiani, de seu cargo precipitou a golpe. Em 28 de julho, o general Tiani apareceu na televisão nacional confirmando o golpe e proclamando que havia assumido o CNSP, tornando-o o novo chefe de Estado de fato.

Os acontecimentos no Niger, país situado na África Ocidental na região do Sahel e abaixo do deserto do Saara com o pior Índices de Desenvolvimento Humano do mundo geraram uma crise regional com repercussões e implicações geopolíticas mundiais.

O Níger é um Estado-Nação com regime republicano, composto por uma variedade de etnias Hauçás (55,4%), zarma (21%), tuaregues (9,3%), fulas (8,5%), canúris (4,7%), tubus (0,4%), árabes (0,4%), gurmas (0,4%), outros (0,1%).,adota o francês como língua oficial e línguas e dialetos regionais, sofrendo com a pobreza e a miséria em sua população com indicadores altamente negativos (mais de 40 % da população abaixo da linha da pobreza e cerca de 4,3 milhões de habitantes dependentes diretamente de assistência econômica e humanitária).

Seu principal produto de exportação é o urânio, cuja extração e processamento é monopolizado pela França através de sua mineradora ORANO, sendo uma matéria-prima estratégica para o abastecimento das usinas nucleares francesas, as quais compõem majoritariamente a infraestrutura energética da França. O urânio explorado no Níger também garante à França segurança no estoque de um produto essencial para seu programa atômico para fins militares e sua dissuasão nuclear.

Pressionado pela França, o bloco dos países que compõem a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), bloco político-econômico presidida pela Nigéria, ameaçou usar a força para reintegrar o presidente deposto Mohamed Bazoum se os militares golpistas se recusassem a fazê-lo até o dia 07 de agosto (expirado o ultimato, apesar das ameaças de intervenção militar supostamente a ser liderada pela Nigéria, nada ocorreu). Vale ressaltar que Burkina Faso e Mali alertaram contra o uso da força e prometeram sua solidariedade com a junta militar no Níger. No dia 01 de agosto, o Ministério das Relações Exteriores da Argélia alertou ontem contra o recurso à intervenção militar estrangeira para restaurar a ordem constitucional no Níger, embora tenha defendido a restauração da ordem constitucional anterior com o restabelecimento do Presidente Mohamed Bazoum às suas funções presidenciais.

As reações em apoio ao Níger dos estados liderados pela junta armaram o palco para uma divisão mais profunda e potencial desintegração do bloco da África Ocidental.

Bazoum, de 63 anos, está detido pelos golpistas com sua família em sua residência oficial em Niamey desde 26 de julho. Ele venceu uma eleição em 2021 que deu início à primeira transferência de poder do Níger de um governo civil para outro.

A crise no Níger ganha importância por ser um dos maiores países do Sahel e que desempenha um papel vital na luta contra os jihadistas na região. Como veremos neste ensaio, o golpe de estado promovido pela junta militar que governa o país terá grandes implicações para a luta contra o terrorismo e a insurgência na região, para a influência das potências ocidentais na dinâmica das relações de poder e no desenvolvimento de novos desafios de segurança para a Nigéria, caso a situação no país se agrave, considerando a forte instabilidade econômica, política, social e militar que a nação mais populosa da África subsaariana vivência.

2 – Principais desafios domésticos do Níger como Estado-Nação

Impulsionado por um conjunto de desafios complexos e inter-relacionados, incluindo má governança, falta de serviços básicos, maior competição por recursos naturais cada vez mais escassos, tensões intercomunitárias, crescente insegurança e deslocamento em massa, a região do Sahel tem visto um aumento dramático de violência terrorista que múltiplas intervenções internacionais se mostraram incapazes de conter efetivamente na última década.

Neste contexto, o Níger enfrenta uma série de desafios à sua segurança interna oriundas de grupos jihadistas salafistas: no oeste, enfrenta a insurgência no Sahel liderada pelo Islamic State Sahel Province (IS Sahel), Islamic State in the Greater Sahara (EIGS) e o Jamaat Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), afiliado à al-Qaeda, enquanto a região de Diffa, no sudeste, é afetada pelo Islamic state West Africa Province (ISWAP) e pela insurgência do Boko Haram. A região central de Tahoua está vendo uma mistura de militância islâmica e banditismo descarado do IS Sahel. Em Maradi, ao longo da fronteira sul com a Nigéria, gangues organizadas de bandidos de alta periculosidade também são altamente ativas.

A região de Agadez, rica em ouro e afetada por rotas de contrabando que se estendem ao longo da fronteira com a Líbia, Argélia e Chade, também atraiu uma infinidade de grupos armados, dentre eles rebeldes chadianos e sudaneses, narcotraficantes e gangues do crime organizado, todos contribuindo para um banditismo rural generalizado e sem controle eficaz pelas forças de segurança do país.

A região de Tillaberi continua sendo a mais afetada pelo conflito, embora haja uma notável mudança geográfica do Norte para o oeste da região. Essa mudança na atividade violenta pode ser atribuída a vários fatores convergentes. Notavelmente, o EI Sahel, o ator armado mais ativo tanto no país quanto na região de Tillaberi, concentrou seus esforços no lado maliano da fronteira no início de 2022. Esse redirecionamento estratégico coincidiu com a retirada de forças da França do Mali e a subsequente reconfiguração de sua missão ao Níger, onde as operações se concentraram principalmente no norte de Tillaberi. O IS Sahel e o JNIM também se engajam em campanhas simultâneas no vizinho Burkina Faso, com as áreas fronteiriças no oeste de Tillaberi sendo usadas como campo de concentração.

Além disso, as autoridades do Níger têm feito esforços concentrados para resolver conflitos intercomunitários de longa data em Ouallam e Banibangou, os departamentos anteriormente mais afetados pela violência. A combinação desses fatores provavelmente contribuiu para a mudança observada nos engajamentos armados.

O país enfrenta, portanto, um grave desafio à sua segurança pública, com atividades de grupos jihadistas islâmicos. Casos de saques e destruição de propriedades ao longo do ano de 2023 foram os tipos de incidentes mais comuns durante esse período, sugerindo que grupos militantes como o IS Sahel e o JNIM veem cada vez mais o Níger como um alvo importante para a extração de recursos e práticas criminosas, exigindo atuação crescente das forças de segurança.

A região ocidental de Tillaberi é a mais afetada pelo conflito com os grupos radicais islâmicos, embora tenha havido uma notável mudança geográfica do Norte para o oeste na incidência de conflitos.

O recente golpe militar no Níger é o nono de uma longa série de golpes e tentativas de golpe que desestabilizaram a África Ocidental e Central nos últimos três anos. A turbulência política em Niamey levanta sérias preocupações com o futuro do Sahel, uma região que se tornou o epicentro do terrorismo global, respondendo por 43% das mortes por terrorismo em 2022, mais do que o Sul da Ásia, o Oriente Médio e o Norte da África juntos. Impulsionado por um conjunto de desafios complexos e inter-relacionados, incluindo má governança, falta de serviços básicos, maior competição por recursos naturais, cada vez mais escassos, tensões étnicas, crescente insegurança e deslocamento em massa. O Sahel tem visto um aumento de violência terrorista que múltiplas intervenções internacionais se mostraram incapazes de conter efetivamente na última década.

Localizado na encruzilhada entre os dois principais focos terroristas nas regiões do Sahel e do Lago Chade, o Níger tem um papel central a desempenhar na contenção da expansão de grupos terroristas, com qualquer deterioração adicional de sua situação política e de segurança arriscando aumentar o arco de instabilidade que os terroristas exploram. Considerando o contexto regional mais amplo, esta breve análise visa refletir sobre como essa nova agitação política pode impactar os esforços para conter o extremismo violento no Sahel, tanto a curto quanto a longo prazo.

Embora o Níger tenha conseguido se diferenciar de seus vizinhos do Sahel como um “parceiro menos problemático” para os aliados ocidentais, ainda assim tem uma série de fraquezas e vulnerabilidades estruturais que podem ajudar a explicar os eventos recentes e suas possíveis implicações. Primeiro, o Níger tem uma história de golpes de estado e tentativas de golpe, com esta situação marcando o quinto golpe ‘bem-sucedido’ na história do país desde sua independência em 1960. Mais recentemente, suas instituições foram ameaçadas por uma tentativa de golpe em março de 2021, apenas dois dias antes da posse de Bazoum. Nesse cenário, nossa avaliação os eventos em andamento retratam uma das diversas disputas de poder que atormentaram as esferas militares e políticas do Níger nos últimos anos.

Além disso, o Níger partilha com os seus países vizinhos do Sahel desafios relacionados com a fraca governabilidade e infraestrutura estatal deficiente, particularmente em áreas rurais remotas. De acordo com o Banco Mundial, mais de 10 milhões de pessoas, representando cerca de 40 por cento da população, viviam em extrema pobreza em 2021. Registrando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo do mundo.

O Níger enfrenta escassez de água e insegurança alimentar aguda. Combinado com os efeitos da mudança climática, bem como um crescimento populacional notavelmente alto, essas dinâmicas não apenas levaram à insatisfação entre os cidadãos, mas também forneceram um terreno fértil para a disseminação do extremismo violento.

Além disso, os grupos jihadistas passaram décadas estabelecendo alianças com tribos locais e se integrando progressivamente em suas estruturas sociais, com as quais conseguiram expandir suas redes de patrocínio, controlar rotas comerciais e não ser considerados um estranho político. Além disso, os grupos jihadistas têm instrumentalizado os interesses étnicos como próprios, ganhando legitimidade junto a certas tribos que se sentem agredidas pelas autoridades estatais, o que tem intensificado conflitos de natureza étnica e reforçado uma base social. Exemplo disso pode ser o seu alinhamento com tribos e clãs tuaregues e fulanis (duas etnias distribuídas por vários estados do Sahel com carácter transfronteiriço, com tradições nômadas e sem Estado próprio).

3 – Acontecimentos recentes e implicações regionais

O Níger representa o último dos três estados centrais da região do Sahel a sucumbir a um golpe militar – depois do Mali, em 2020 e 2021, e dois golpes em Burkina Faso, em 2022. Até a recente tomada do poder por um grupo de líderes militares, o Níger não só era rotulado como o “último bastião da democracia no Sahel”, mas também era considerado um “baluarte contra os jihadistas e a influência russa” em toda a região.

Em meio à deterioração contínua das relações com as juntas militares governantes do Mali e de Burkina Faso, o governo democraticamente eleito de Mohamed Bazoum emergiu como um novo parceiro privilegiado para o Ocidente. Localizado na encruzilhada entre os dois principais focos terroristas nas regiões do Sahel e do Lago Chade, o país tem um papel central a desempenhar na contenção da expansão de grupos terroristas, com qualquer deterioração adicional de sua situação política e de segurança arriscando aumentar o arco de instabilidade que os terroristas exploram habilmente.

Enquanto alguns interpretam este evento através do contexto da crescente influência da Rússia mediante cooperações relativas a iniciativas de treinamento militar, os principais catalisadores foram essencialmente de natureza doméstica.

O general Abdourahamane Tchiani, líder do golpe militar, estaria prestes a perder o cargo de chefe da Guarda Presidencial – um papel no qual ele defendeu o regime contra inúmeras tentativas de golpe durante os mandatos do ex-presidente Mahamadou Issoufou e de seu sucessor Bazoum.

É possível que o crescente descontentamento tenha se intensificado ao longo dos anos sob o governo de Issoufou e seu sucessor Bazoum. Essa insatisfação subjacente pode ter preparado o cenário para o recente golpe militar, dado o rápido alinhamento de outros oficiais militares superiores.

Tentativas de golpe anteriores enfatizam ainda mais um frágil equilíbrio no qual o regime teve que se apoiar e uma ameaça que Bazoum pode ter subestimado. A decisão de oficiais superiores de vários ramos de ingressar na junta não significa necessariamente apoio inequívoco ao golpe. Em vez disso, pode refletir um movimento estratégico para gerenciar a crise em curso.

Abrigando bases americanas e francesas em seu solo, o apoio internacional ao Níger se multiplicou nos últimos anos. A UE alocou mais de 500 milhões de euros para “melhorar a governança, a educação e o crescimento sustentável” no país entre 2021 e 2024 e lançou no início deste ano uma missão de treinamento militar de 27 milhões de euros (EUMPM Niger).

Além de cerca de 1.500 soldados estacionados no Níger, a França forneceu ao país cerca de 120 milhões de euros em ajuda econômica em 2022. Os EUA, que atualmente têm duas bases militares de drones e mais de 1.000 soldados destacados no Níger, anunciaram em março do corrente ano 150 milhões de dólares em assistência direta ao país.

Uma desconexão parece ter crescido entre o discurso oficial do governo do presidente deposto Bazoum, pedindo ativamente o envio de mais tropas internacionais para o Níger e a opinião pública mais ampla. Alguns incidentes, como o bloqueio de um comboio francês em Tera em novembro de 2021 que resultou na morte de três manifestantes, sinalizaram e provavelmente agravaram os ressentimentos da população. Da mesma forma, a marcha contra a presença das forças francesas, que foi proibida antes que pudesse ocorrer em 17 de agosto de 2022, aponta para sentimentos antifranceses e descontentamento popular mais fortes do que o discurso político havia sugerido. Acredita-se que tal ressentimento esteja ligado às expectativas não atendidas da população em relação às forças externas, as quais são consideradas ineficientes em trazer segurança. Tais críticas sociais são agravadas pela opinião pública local, enquadrando o imperialismo ocidental como a raiz de todas as questões. Algumas figuras e organizações da sociedade civil também expressaram sua oposição a uma maior presença internacional.

Há um temor na opinião pública e em amplas parcelas dos países integrantes da CEDEAO que, ao assumirem uma custosa e imprevisível operação militar no Níger com possíveis desdobramentos em outros países, aqueles venham a se tornar instrumentos de interesses de potências ocidentais colonialistas, como a França.

O Níger, um dos países mais pobres do mundo, depende muito da ajuda externa que pode ser retirada se Bazoum não for reintegrado como chefe de Estado, alertou a França, promovendo forte pressão diplomática contra o novo regime.

No dia 14 de agosto, Vedant Patel, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, criticou a detenção do presidente deposto do Niger e a intenção da junta militar em instaurar um processo por alta traição contra o mandatário deposto, agravando a crise.

A CEDEAO condenou também as ameaças de processo judicial contra o presidente deposto Mohamed Bazoum por ” alta traição “, afirmando que constituem uma nova ” provocação ” do regime militar que tomou o poder no Níger.

Com os EUA e a França tendo suas bases militares no Níger, e a Rússia se posicionando como o aliado que a África tanto precisa, o país pode se tornar um teatro para a demonstração de poder entre o Ocidente e o Oriente.

Temendo uma invasão militar, os novos governantes militares do Níger anunciaram que fecharam o espaço aéreo do país, alertando que qualquer tentativa de o violar teria uma “resposta enérgica e imediata”.

A Nigéria, por sua vez, já cortou o fornecimento de eletricidade ao vizinho Níger, aumentando os temores da situação humanitária já crítica no país, enquanto Niamey fechou as fronteiras deste vasto país do Sahel, dificultando a entrega de alimentos.

O apoio popular galvanizado pela junta militar, com narrativa anticolonialista, tem contribuído para consolidar o novo regime. Expirado o ultimato de uma semana da CEDEAO, na tarde de domingo do dia 06/08, na capital Niamey, milhares de apoiadores do agora governante Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP) se reuniram em um estádio envolto em bandeiras russas e carregando retratos de líderes do movimento militar. No estádio Seyni Kountche de 30.000 lugares, nomeado após o primeiro líder do golpe de estado do Níger em 1974, os líderes do CNSP, incluindo o general Mohamed Toumba, saudaram uma multidão, em demonstração de força e apoio popular que dissuadiu os planejamentos de uma intervenção militar externa supostamente a ser liderada pela Nigéria.

Buscando fortalecer apoio externo, em 14 de agosto, uma delegação de golpistas, chefiada pelo general Moussa Salao Barmou, deslocou-se no dia anterior para Conakry, capital da Guiné, para pedir apoio. A delegação nigeriana foi recebida pelo líder guineense, Mamadi Doumbouya, e a reunião decorreu no palácio Mohamed V. Em resposta, o Coronel Mamadi Doumbouya reiterou a posição do seu país, favorável à autodeterminação do Níger, neste momento de crise: “No que diz respeito à República da Guiné, somos pan-africanos estamos e sempre estaremos, e foi o que aconteceu com nossos irmãos em Burkina Faso, Mali e Níger. Nossa posição é clara: “enfrentar os problemas de nossos povos, que são muito importantes para nós”, declarou o líder político-militar guineense.

No dia 15 de agosto, uma possível escalada para uma guerra regional se intensificou, com declarações da Costa do Marfim apoiando uma intervenção militar no Níger, cujos golpistas  chamaram de volta o enviado do seu país a Abidjan, capital da Costa do Marfim, Referindo-se ao sinal verde dos vizinhos da África Ocidental para uma possível intervenção armada para restaurar a democracia no país, os novos governantes militares nigerianos denunciaram a “vontade” de Alassane Ouattara, presidente da Costa do Marfim, em “ver esta agressão ilegal e sem sentido contra o Níger realizada”.

Diante da forte desconfiança entre os países envolvidos na crise, a junta militar no Níger não está disposta a ter contatos diretos com a CEDEAO, dificultando as negociações que levem a solução diplomática para a crise.

4 – Implicações regionais

Para a CEDEAO, o sucesso do golpe no Níger vai minar o poder de um bloco ainda em consolidação e reforçar os sentimentos de que é frágil e ineficiente na resolução de crises. Também indicará que os golpes se tornaram normais e aceitáveis.

Ademais, o tamanho do Níger em dimensões territoriais, sua população dispersa e massa de terra inóspita e com variações geográficas significativas tornará uma campanha militar perigosa, complexa e além das capacidades operacionais dos países integrantes da CEDEAO.

Uma eventual ação militar no Níger pela CEDEAO, provavelmente também causará uma crise humanitária para a qual a Nigéria não está preparada. Se houver uma guerra civil no país, uma parte significativa da população se mudará para a Nigéria, que já se encontra envolta em crises de natureza econômica e social e perante sérias dificuldades.

Para criar um contexto jurídico e fático de legitimidade, a CEDEAO muito possivelmente irá qualificar uma intervenção militar no Níger como uma operação policial para reestabelecer o status quo ante, desfazendo as ações da junta militar que promoveu o golpe em 26 de julho.

O sentimento antifrancês na região do Sahel e do Saara está aumentando, enquanto a atividade russa, muitas vezes por meio do grupo mercenário Wagner, cresceu e se consolida com as recentes cimeiras realizadas por Moscou através da “Cúpula Rússia-África”, com a implementação de acordos econômicos, militares, energéticos e culturais. Moscou alertou contra a intervenção armada de fora do Níger, indicando apoio militar indireto e através de forças proxies, notadamente a empreiteira militar privada Wagner Group, agora redirecionada prioritariamente para ações na África em apoio a interesses geopolíticos da Federação Russa.

Um reflexo disso foi no dia 11 de agosto, quando milhares de apoiadores do regime militar que tomou o poder no Níger se reuniram perto da base militar francesa em Niamey, entoando slogans antifranceses “Abaixo a França, abaixo a Ecowas”, em reação às manifestações da cúpula da CEDEAO que legitimou uma possível intervenção militar para restabelecer o presidente deposto Mohamed Bazoum em 26 de julho.

Desde que tomaram o poder, os militares do Níger atribuem a instabilidade do país à França, acusando-a de estar nos bastidores da decisão tomada pela CEDEAO de ativar e enviar sua força de reação para restaurar a ordem constitucional. A França, aliada do Níger antes do golpe de estado, destacou neste país cerca de 1.500 soldados engajados com o exército nigeriano na luta contra os grupos jihadistas que atuam na região do Sahel, estando parcialmente estacionados em uma base em Niamey, junto com o exército do Níger.

Outra fonte de grandes preocupações no Ocidente coletivo é a mudança potencial na posição do Níger em relação à Rússia e, particularmente, a cooperação possível com seu grupo paramilitar Wagner Group. Bandeiras russas agitadas por apoiadores do golpe nas ruas de Niamey podem legitimar o simbolismo da Rússia como a portadora do sentimento antiocidental e especialmente antifrancês em uma faixa significativa da África nos últimos anos.

Além disso, à margem da cúpula Rússia-África que ocorre em São Petersburgo, Yevgeny Progozhin, proprietário do Wagner, saudou o golpe no Níger como uma boa notícia e oferecido o serviço de seus combatentes para trazer ordem. A nosso ver, se o Ocidente decidir isolar o novo regime do Níger, é possível que ele se volte para grupos como o Wagner Group e à Rússia para apoiar seus esforços e ganhar legitimidade em troca de acordos sobre a exploração dos cobiçados recursos naturais do país.

Ademais, a falta de meios operacionais e poder de combate dos países integrantes da CEDEAO (muitos já envoltos em dificuldades internas para controlar insurgências islâmicas) agrava consideravelmente a reputação do bloco. Com base nesta situação, a cimeira dos chefes de Estado e de Governo dos países da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Economic Community of West African States, Ecowas) sobre a crise no Níger pós-golpe, agendada para hoje em Accra, capital do Gana, foi adiada por tempo indeterminado, sendo alegadas “razões técnicas” como pretexto. Neste contexto, a reunião dos comandantes dos exércitos da Ecowas sobre o golpe de Estado no Níger foi adiada porque a Ecowas Standby Force, a tropa de reserva que a organização decidiu ativar, não está pronta para desdobramento ou prontidão de combate.

Neste momento as principais componentes da Ecowas Standby Force correspondem às forças militares dos principais países participantes, nomeadamente Nigéria, Senegal e Costa do Marfim, que em 2022 tinham exércitos compostos, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, respetivamente de 223 mil, 27 mil e 19 mil soldados, porém com problemas logísticos, de treinamento, eficiência de combate e defasagem tecnológica para operações expedicionárias, bem como crises de segurança doméstica que minam ainda mais suas capacidades.

Embora a força militar do Níger seja ínfima em todos os aspectos e variáveis, uma intervenção militar em um país extenso e com terreno adverso favoreceria ações de insurgência e resistência assimétrica, tornando penoso, custoso e difícil o controle operacional pelas tropas conjuntas da CEDEAO, que carecem de interoperabilidade e integração.

5 – Considerações finais

As consequências do golpe militar no Níger trazem um alto potencial de instabilidade interna e conflito regional envolvendo outros países africanos, bem como um aumento nas atividades terroristas de militantes islâmicos, retrocesso institucional, restrição das liberdades civis e graves consequências socioeconômicas devido às sanções já aplicadas por países ocidentais e pela CEDEAO. Além disso, a junta militar não consolidou sua tomada de poder em todo território e enfrenta forte oposição de muitas partes interessadas internacionais com capacidade de desestabilização do país.

O sucesso da junta militar na manutenção do poder e na construção de sua legitimidade nacional e internacional não estão garantidos, principalmente diante da significativa oposição internacional. A junta militar ainda não consolidou sua posição e a situação está longe de estabilizada. O apoio persistente ao presidente deposto Bazoum traz o potencial para agitação contínua, manifestações em massa contra a junta e contestação violenta entre facções políticas pró-junta militar e pró-regime deposto, acrescentando camadas adicionais de incerteza.

O sucesso do golpe de estado no Níger pode gerar instabilidade em toda a região do Sahel, exacerbando os desafios de segurança existentes e possivelmente dando origem a novas ameaças tanto a nível nacional como regional devido às ramificações da atual crise. Insurgências em curso e grupos armados como JNIM, IS Sahel, ISWAP e o EIGS.

Além disso, o Níger também corre o risco de graves repercussões socioeconômicas devido às sanções previstas e à suspensão da cooperação e ajuda externa. Uma maior desestabilização do Níger certamente representaria sérios riscos de segurança para a região como um todo, pois essa turbulência política poderia afetar os esforços de combate ao terrorismo, beneficiando organizações criminosas e terroristas. Esta nova convulsão política levanta questões importantes sobre a eficácia da abordagem dos países ocidentais em lidar com o extremismo em uma região que tem altos índices de miséria e fragilidade institucional e governamental.

Deve-se considerar atentamente as possíveis consequências de sanções diplomáticas e econômicas estabelecidas pela França, CEDEAO e outros países ocidentais sobre as populações locais já afetadas por sucessivas crises, provavelmente causarão sérias turbulências internas que certamente transbordarão para os vizinhos. A instabilidade política agrava as condições de governabilidade e a miséria que acabam se tornando em instrumentos úteis para os grupos jihadistas.

Fontes consultadas


[1] Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública

[2]  Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br

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Gabriel BR
Gabriel BR
1 ano atrás

Eu não entendo como os países africanos alinhados a França usam tanto equipamento russo e chinês… era para a indústria francesa imperar…

Fernando "Nunão" De Martini
Responder para  Gabriel BR
1 ano atrás

As lutas de independência nos anos 70 tiveram influência m soviética em vários dos países africanos, sem falar do apoio direto cubano em alguns casos.

Ainda assim, a influência francesa continuou grande em vários países, passado o processo.

Na mesma época o Brasil exportava bastante equipamento militar para países da África. E em alguns momentos das independências africanas, o Brasil teve que disputar mercados com franceses. E também ficou em algumas saias-justas, pois era favorável às independências africanas e ao fim do colonialismo europeu, mas ao mesmo tempo, a ditadura militar brasileira era contra a influência soviética nesse processo que visava tornar comunistas esses países, vindo para a esfera da União Soviética.

Houve dificuldades também com Portugal, que desejava equipamentos brasileiros (como os jatos Xavante) para suas intervenções na África, o que pelos motivos acima também era um assunto espinhoso para o Brasil. Junte tudo isso com a Revolução dos Cravos, e a coisa complica ainda mais.

Pra ver como Relações Internacionais não admitem análises superficiais, como a gente vê em muitos comentários (deixo claro que não estou falando de você, que fez uma pergunta, apenas aproveitei a oportunidade).

GUPPY
GUPPY
Responder para  Fernando "Nunão" De Martini
1 ano atrás

Lembro que o Brasil vendeu jatos Xavante para o Togo. Acho que foram 9 aviões.

GUPPY
GUPPY
Responder para  GUPPY
1 ano atrás

Corrigindo, foram 6 unidades do Xavante que o Togo comprou do Brasil.

Maurício.
Maurício.
1 ano atrás

“mantendo como refém o presidente democraticamente eleito do Níger.”

Temos que tomar cuidado nessa de “democraticamente eleito”, nessa eleição teve protestos, não podemos nos esquecer que Maduro diz que também foi “eleito democraticamente”. De acordo com a Freedom House, no continente africano só África do Sul, Lesoto, Botsuana, Namíbia e Gana (e mesmo assim ainda tenho as minhas dúvidas) o resto é parcialmente livre e não livre, Níger estava em parcialmente livre até o golpe, ou seja, não era uma democracia plena. Digo isso porque durante a primavera árabe muitos justificavam que os países não eram democráticos, por isso mereciam as revoltas, ou seja, o pau que dá em Chico também tem que dar em Francisco.