A Ofensiva Ucraniana em Kherson
Rodolfo Queiroz Laterza[1]
Ricardo Cabral[2]
1 – INTRODUÇÃO
Neste ensaio, vamos analisar as últimas manobras ofensivas ucranianas que resultaram na recuperação de grandes extensões do território que foram perdidos para os russos.
A ofensiva ucraniana, que teve início em fins de agosto, é fruto de pelo menos três meses de intensa preparação. Em junho, o exército ucraniano tinha sido praticamente destruído pelos russos, em que pese a superioridade de efetivo, armamento e do treinamento recebido pelos ucranianos da OTAN.
Em meados de maio, Kiev deu início à convocação de novos reservistas, que foram treinados por oficiais da OTAN. A aliança atlântica foi também responsável pela reorganização e o completo reequipamento das Forças Armadas Ucranianas. Atualmente “assessoram” diretamente a condução das operações ucranianas além de fornecer C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance) que permitem uma consciência situacional superior a russa.
A partir de julho, o ritmo de avanço russo foi sendo cada vez mais lento devido a uma série de fatores que já abordamos em ensaios anteriores, os quais sugerimos a leitura: “Uma análise sobre o baixo efetivo das unidades de combate russas na Guerra da Ucrânia” https://historiamilitaremdebate.com.br/uma-analise-sobre-o-baixo-efetivo-das-unidades-de-combate-russas-na-guerra-da-ucrania/ , “7 meses de Guerra no Leste europeu” https://historiamilitaremdebate.com.br/7-meses-da-guerra-no-leste-europeu/.
Em fins de agosto e início de setembro, os ucranianos lançaram uma grande contra-ofensiva em larga escala, analisadas no artigo “Algumas considerações estratégicas sobre a Ofensiva ucraniana em Kharkhi-Izium” https://historiamilitaremdebate.com.br/algumas-consideracoes-estrategicas-sobre-a-ofensiva-ucraniana-em-kharkhi-izium/
2 – A Ofensiva
A partir de 03 de outubro, à margem direita do Dnieper, no eixo de direção do assentamento de Berislav, na área de Krivoy Rog, as Forças Armadas da Ucrânia – FAU desenvolveram ofensiva por intermédio de brigadas mecanizadas, empregando centenas de blindados e veículos utilitários adaptados para assalto móvel (technicals). O ataque explorou as linhas de defesa russas de primeiro nível situadas nos flancos. Estas posições estavam sendo guarnecidas com baixo efetivo de pessoal, além de existirem lacunas não cobertas pelo fogo de artilharia e da aviação tática, bem como sem móveis suficientes para sustentar a posição.
Contornando o reservatório de Nova Kakhova e promovendo incursões rápidas com destacamentos móveis ao longo do perímetro de Andrevvka, na margem esquerda do reservatório, as forças ucranianas em 4 dias recapturaram mais de uma dúzia de assentamentos, forçando as poucas unidades russas desdobradas na região a realizarem um retraimento para uma nova linha defensiva.
A fim de evitar o cerco de suas unidades mais avançadas dispersas na linha de contato, por unidades mecanizadas numericamente superiores das Forças Armadas da Ucrânia, o Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia e o comando do Distrito Militar do Sul decidiram retrair a 83º Brigada Aerotransportada, a 810ª Brigada de Fuzileiros Navais da Frota do Mar Negro e o restante de outras formações do exército russo da maior parte do chamado ponto de apoio de Krivoy Rog.
Em 3 de outubro, de acordo com fontes como Rybar e Newsfront, unidades do agrupamento Novovorontsovskaya das FAU (que integram parte da 128a unidade de assalto à montanha, a 60ª Brigada mecanizada e a 17ª Brigada de tanques com cerca de 30 MBT T-72M1R e 80 veículos blindados de transporte de pessoal, de origem ocidental, como o M-113 e o Mastiff) promoveram assalto à 1ª linha de defesa da 83ª Brigada das Forças Aerotransportadas da Rússia, na seção de Zolotaya Balka – Belyaevka.
Ao explodir a barragem em Dudchany, os paraquedistas russos conseguiram impedir um avanço rápido do inimigo e ganharam tempo para a construir posições fortificadas em Milov, Krasny Yar, Sukhanovo e Novoraysk, onde consolidaram uma linha de defesa. Na noite de 5 de outubro, a ponta de lança do ataque das FAU foi temporariamente detida a 25 km de Berislav e a 33 km de Nova Kakhovka, porém estando ambas as cidades de significado estratégico dentro do raio de ação de obuseiros como o M-777 e de ataques dos lançadores de foguetes múltiplos M270 Multiple Launch Rocket System (M270 MLRS) ou M142 High Mobility Artillery Rocket System (HIMARS)
Tendo esperado a aproximação das unidades de reservas vindas de Vysokopole e Novovorontsovka, bem como o apoio aéreo aproximado do bombardeiro Su-24M da linha de frente, os escalões mecanizados das FAU fizeram um desvio de 90 graus perto de Melovoye e fecharam o arco tático na área de Sadkov e Borozensky, com a espinha dorsal das FAU avançando pela região de estepe para o canal do Dnieper.
Nesse contexto, as unidades do exército da Federação Russa (FR) que recuaram de Kostromka e Davydov Brod, conseguiram formar uma nova linha defensiva de 50 Km ao longo da rodovia R-81 (Snigirevka – Kherson), coberta pelo leito sinuoso do rio Ingulets. Juntamente com as áreas fortificadas em Tamarino e Dmitrinka, as posições fortificadas ao longo da rodovia R-81 se transformaram em um obstáculo difícil para a continuidade do avanço das forças ucranianas. Estas posições diminuíram o ritmo do avanço das FAU desde o dia 06/10, predominando neste setor da frente batalhas de artilharia e reconhecimento por UAVs (veículos aéreos não tripulados).
De acordo com relatório do dia 08/10 do canal militar Rybar, a situação nos setores Andreevsky e Berislav, na frente de Kherson, indicou as seguintes realidades operacionais:
- O comando ucraniano continua os preparativos para um novo ataque às posições russas nos setores Andreevsky e Berislav;
- 93 unidades de equipamento militar foram enviadas através de cruzamentos para evacuar equipamentos danificados e formar um grupo na margem esquerda do rio Ingulets, enquanto 104 unidades seguiram na direção oposta;
- Na noite de 8 de outubro, o comando da 60ª Brigada de Infantaria enviou um DRG móvel para a área da vila de Pyatikhatki para sondar as linhas defensivas das forças russas;
Além desses aspectos acima, um grupo de reconhecimento ucraniano tentou romper o sul de Davydov Brod, mas as tropas russas repeliram o ataque de caráter diversionista.
No entanto, tal como ressaltado, desde a construção de uma área fortificada das Forças Armadas da Ucrânia em Milov, as cidades de Novaya Kakhovka e Berislav estão dentro do alcance dos avançados projéteis ocidentais de 155 mm HE ERFB-RA e Excalibur-S com um alcance de 47-55 km, usados por obuses autopropulsados CAESAR e Paladin. Apenas os sistemas MLRS “Smerch” implantados em Nova Kakhovka e Nizhniye Serogozy (na margem leste do Dnieper) podem fornecer às forças russas sistemas de contramedidas e de contra-bateria para neutralizar os sistemas de artilharia ucranianos.
As FAU têm usado intensamente pequenos esquadrões móveis de até 20 combatentes para reconhecimento nos flancos e infiltração na retaguarda russa. Essa abordagem tática foi empregada massivamente na recente ofensiva no eixo de Balakleya e Kupyansk, sendo bastante efetiva em flancos abertos das linhas de defesa russas, por vezes defendidas por até 20 combatentes em um perímetro de 1 km.
Desde 3 de outubro, em todo perímetro operacional de Mikolayev-Krivoy Rog, forças ucranianas na forma de DRGs com até 20 combatentes realizam reconhecimento em força em áreas situadas na primeira linha de contato. Os grupos consistem em combatentes das brigadas de defesa territorial apoiadas por estrangeiros, principalmente poloneses.
A principal tarefa destes destacamentos móveis (DRGs) é ocupar e manter as posições tomadas nas incursões. Os DRG infiltram-se nas brechas existentes das formações de combate das FFAA da Federação Russa, as quais em grande parte do perímetro operacional sofrem de escasso efetivo.
As atividades de um DRG ucraniano típico são precedidas por um bombardeio maciço de artilharia e MLRS. As tropas ucranianas estão atirando indiscriminadamente em posições russas, quase sem interrupção ao longo de todo perímetro.
Em setembro, mais de 20 unidades de artilharia rebocada e autopropulsada de origem ocidental, como o M-109A5, o sistema HIMARS e o FT-70 foram implantados nos eixos da área de Kherson. O principal objetivo é sondar os pontos mais vulneráveis na defesa das forças russas e esgotar o contingente russo devido aos constantes ataques, principalmente à noite.
Outro aspecto tático a ser considerado é a ampla concentração de veículos blindados nas áreas de ataque principal ao longo do respectivo perímetro operacional. Simultaneamente com as ações dos grupos de assalto, as FAU estão desdobrando um grande número de veículos blindados na direção do ataque principal, a fim de encurralar as defesas das forças russas.
Ao mesmo tempo, os sistemas de defesa aérea ucranianos S-300P foram transferidos para os arredores de Andrevvka e na área do reservatório de Nova Kakhova para cobrir as forças terrestres ucranianas, com equipes de infantaria móveis operando na linha de contato com uso de MANPADS em camadas.
Esse ponto é fundamental, pois o nível de concentração de forças (blindados, artilharia e infantaria) se transforma imediatamente em um alvo compensador para as forças russas. A fim de se evitar ataques aéreos e de tiro ajustado da artilharia de obuses e foguetes, os ucranianos contam com sistemas de alerta aéreo antecipado da OTAN, sistemas antiaéreos (S-300P e MANPADS) e de guerra eletrônica a fim de cegar os sistemas de direção de tiro dos sistemas de ataque russo.
Ademais, as FAU promovem uma eficiente medida tática de ocultação da direção principal de ataque, no escopo de garantir o sigilo das atividades em andamento. Para fazer isso, o comando ucraniano conduz desinformações deliberadas em fontes abertas e fechadas na internet, através de ações de IPSO (information and psychological special operations).
Exemplo disso foi verificado na troca de rádio da unidade do 66º Ombr das FAU, quando eles informaram deliberadamente sobre a retirada da conexão da direção devido a supostamente grandes perdas de mão de obra e equipamentos na esperança de uma ofensiva por tropas russas.
E para ludibriar o comando russo, as FAU realizam uma transferência demonstrativa de forças para direções falsas, obrigando as Forças Armadas da FR a transferir unidades para manter a linha no eixo indicado falsamente pelas FAU.
3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ofensiva ucraniana em Kherson recuperou aproximadamente 960 km2, principalmente no eixo à margem direita do Rio Dnieper e na zona contígua ao reservatório de Nova Kakhova.
Este avanço ficou por ora estacionado em uma linha de defesa de 30 km, com as forças russas se reagrupando e aproveitando locais lacustres e o clima recentemente chuvoso. Ataques maciços de artilharia conseguiram neutralizar novos assaltos por parte das FAU. Atualmente, as reservas de combate da FAU estão sendo implantadas para mais um esforço ofensivo.
Desde o início de setembro, a Ucrânia detém a iniciativa estratégica. As FAU buscam acelerar ofensivas em vários pontos de linhas da frente de batalha para recuperar o máximo de território com significado estratégico e visando formar fortificações contra a provável ofensiva de inverno russa, quando os cerca de 300.000 mobilizados forem distribuídos nos grupos de batalha.
Ressalte-se, entretanto, que as FAU continuarão com superioridade de pessoal, pois atualmente existem cerca de 130-140 brigadas de pleno direito, muitos batalhões separados “nacionalistas” e uma certa reserva armada com sua própria organização estrutural específica, totalizando até 900 mil reservistas. O Estado-Maior Geral das FAU planeja formar outras 10 a 20 novas brigadas em breve com apoio da OTAN, incrementando o nível operacional.
Ainda que as perdas nas linhas de frente das FAU ultrapassem ligeiramente os 30% do total de pessoal de uma determinada unidade (além da qual é considerada militarmente comprometida em sua capacidade de combate), essas estatísticas conjunturais não afetam o moral das FAU, ainda que a médio prazo possa vir a comprometer, pois atualmente as brigadas e batalhões, mesmo com pesadas perdas, recebem quase instantaneamente recompletamentos da reserva operacional. Portanto, na realidade, as unidades ucranianas com um conjunto completo de 80 a 90% do efetivo participam da batalha, permitindo avanços nos pontos da linha de frente mal defendidos pelas forças russas.
O objetivo russo de retomar os territórios perdidos em setembro e outubro exigirá enorme esforço militar na logística, unidades mecanizadas, sistemas de artilharia e aviação tática. O treinamento dos reservistas exigirá tempo, disciplina e integração doutrinária, além de uma mudança ampla de um sistema ainda ineficaz de comando, controle, coordenação, comunicações e inteligência (C4I).
Em nosso entendimento, provavelmente, o inverno na Ucrânia será palco de intensas operações militares com desdobramentos muito difíceis para os dois beligerantes – cada vez mais focadas na resolução do conflito por meios puramente militares.
Fontes consultadas:
- www.focus.ua
- https://news-front.info/category/articles/
- https://t.me/s/rybar
- https://www.theguardian.com/international
[1] Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública
[2] Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br
Finlândia e Suécia dariam conta do ursinho carinhoso, sem Otan.
Putinho é fraco demais.
Mãe Dinah também era especialista em previsões. As guerras são muito imprevisíveis. O começo sabemos o término não.
A ofensiva foi um sucesso até o momento (não acredito que ela tenha terminado) pois forçou as tropas Russas a ficarem em um lugar menor e por consequência elas tem menos pontos para formar travessias peno Dnipro oque da uma complicada a mais na logística
Agora eu posso dizer que vi um desempenho melhor dos Russos ai também, ao invés de colapsar e debandar como aconteceu em Kharkiv as unidades Russas aparentemente conseguiram recuar sem muita dor de cabeça e formar uma segunda linha de defesa.
A situação não ta boa para as unidades Russas, a decisão estratégica mais inteligente seria tirar esses homens dai. mas agora é certeza que qualquer tentativa de formar uma ponte de pontão vai ser fustigada por artilharia…
Talvez tenha chegado a um ponto em que a conquista da cidade tenha mais valor simbólico do que militar.
Mantinha os Russos encurralados e sob fogo e apostava na ofensiva no Luhansk. E teria a vantagem de reforçar essas posições no caso de um contra ataque vindo da Rússia.
Conquistar Starobilsk já seria uma grande vitória.
Em Karkiv o efetivo era muito pouco. Não tinha como defender uma área de 10mil km com 3mil homens contra 30 mil ucranianos. Um erro muito grande por parte dos russos.
Bela análise, parabéns !
Gosto de suas análises. Parabéns.
Ô coisa chata de acompanhar.
Parece que os combates voltaram à região de Davidov Brod que era dada como tomada pelos ucranianos.
Quem tem razão?
Não se sabe.
É interessante que esta região é de campos abertos,local perfeito para ataques de drones de ataques/ suicidas e munições de vadiagem,é no mínimo inacreditável que as forças armadas russas não utilizem em grande quantidade esse tipo de armamento em vista da enorme quantidade de equipamento pesado a disposição da Ucrânia.
Inacreditável mesmo são as forças militares que estão vendo de fora e não estão fazendo de tudo pra fortalecer o que se mostrou efetivo nesse conflito.
Drones de monitoramento, drones armados, drones suicidas, atgm, manpads e artilharia (lançadores de foguetes + rebocados + autopropulsados).
Além de muita coisa, esses são os equipamentos que se mostraram essenciais nesse conflito com três outras constatações:
– Inteligência e guerra eletrônica;
– doutrina;
– Não dependência de material essencial estrangeiro, especialmente munições e insumos diversos para os equipamentos.
A segurança geopolítica vinha caindo ano após ano. Desde os conflitos o início do século, passando pela “guerra ao terror” e chegando às crises com a Coreia do Norte e com o Irã. Mas nada próximo da guinada que acontece esse ano, pós caos mundial causado pela pandemia.
É inegável a influência do fator econômico no estopim das duas grandes guerras. Hoje, temos todo o contexto. Parece que ficamos literalmente em uma corda bamba nesse ano.
E nós, aqui no Brasil, mais uma vez estamos deixando ao acaso. Estamos totalmente imbuídos em nossos problemas internos sem dar a devida atenção ao que está acontecendo. Deveríamos, no mínimo, estar conversando sobre a criação de condições para que pudéssemos escolher nosso destino em uma eventual ruptura nos próximos anos ou décadas. E isso passa, necessariamente, pela recuperação ou estabelecimento de uma capacidade dissuasoria de verdade pelas nossas FAs.