Resenha do livro ‘Princípios elementares da Propaganda de Guerra’

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USSR propaganda

O livro Princípios elementares da Propaganda de Guerra – Utilizáveis em caso de Guerra Fria, Quente ou Morna (Editora Avante! Lisboa, 2008) – da historiadora Anne Morelli, professora da Universidade Livre de Bruxelas e especialista em crítica histórica aplicada à mídia moderna – ajuda a entender a guerra midiática e informacional do conflito na Ucrânia.

Morelli usa como fonte a obra de Arthur Ponsonby, publicada em Londres em 1928, com o título Falsehood in Wartime.

Ponsonby, hostil à entrada da Grã-Bretanha na guerra em 1914, era representante na Câmara dos Comuns e depois na Câmara dos Lordes. Ele descreveu alguns mecanismos essenciais da propaganda de guerra, que podem ser resumidos em “dez mandamentos”.

Morelli sistematiza os “dez mandamentos” em dez capítulos demonstrando que os princípios não foram aplicados apenas na Primeira Guerra Mundial, mas também regularmente em conflitos mais recentes.

A historiadora ressalta que não procurou sondar a pureza de intenções de uns e de outros, nem quem diz a verdade ou está de boa-fé, mas apenas ilustrar os princípios da propaganda.

1 – Não queremos guerra, estamos apenas nos defendendo!

Segundo Morelli, os próprios estadistas de todos os países sempre garantiram solenemente que não querem a guerra. As guerras são sempre indesejadas, só muito raramente uma guerra é vista positivamente pela população. Com o surgimento da democracia, o consentimento da população torna-se indispensável, por isso a guerra deve ser rejeitada e todos devem ser pacifistas de coração, ao contrário da Idade Média, quando a opinião da população era de pouca importância. “Assim, o governo francês mobiliza o exército e anuncia ao mesmo tempo que a mobilização não é uma guerra, mas, ao contrário, a melhor maneira de garantir a paz”. “Se todos os líderes são inspirados pela mesma vontade de paz, pode-se perguntar por que as guerras irrompem, afinal”. O segundo princípio fornece uma resposta a essa pergunta.

2 – Nosso adversário é o único responsável por esta guerra!

Morelli afirma que esse princípio decorre do fato de que cada parte assegura ser compelida a declarar guerra para evitar que o adversário “destrua nossos valores, ponha em risco nossa liberdade ou nos destrua por completo”. É o paradoxo de uma guerra que é travada para evitar guerras. Isso nos leva quase à frase mítica de George Orwell: “Guerra é paz”. De acordo com esse entendimento, os EUA foram forçados a travar uma guerra contra o Iraque, porque o Iraque não lhe deixou outra escolha.

3 – O líder do nosso adversário é inerentemente mau e se assemelha ao diabo

Morelli escreve: “Você não pode odiar um grupo de pessoas completamente, nem mesmo como seus inimigos. Portanto, é mais eficaz direcionar o ódio para a personalidade principal do país inimigo. Assim, ‘o inimigo’ terá um rosto, e esse rosto naturalmente se tornará objeto de ódio”.

Ela comenta: “O vencedor sempre se retratará como um pacifista que ama acordos pacíficos e compreensão mútua, mas é forçado a entrar em guerra pelo campo oposto, como Bush ou Blair fizeram”. “O campo inimigo é certamente dirigido por um maníaco, um monstro (Milosevic, Bin Laden, Saddam Hussein), (…) que nos desafia e do qual devemos libertar a humanidade”.

4 – Defendemos uma causa nobre, não nossos interesses particulares!

Morelli analisa que os objetivos econômicos e geopolíticos da guerra devem ser mascarados por um ideal, por valores morais e legítimos. Assim, George W. Bush declarou: “Há pessoas que nunca vão entender isso. A luta não é pelo petróleo, a luta é contra a agressão brutal”. O Le Monde escreveu em 22 de janeiro de 1991: “Os objetivos desta guerra são, antes de tudo, os objetivos do Conselho de Segurança da ONU. Participamos desta guerra pelas razões por trás das decisões do Conselho de Segurança e o objetivo essencialmente é a libertação do Kuwait”.

5 – O inimigo está cometendo atrocidades propositalmente; se estamos cometendo erros isso acontece sem intenção

Morelli sustenta que as histórias sobre as atrocidades do inimigo são um elemento essencial da propaganda. As crueldades fazem parte de todas as guerras. Mas insistir na visão de que apenas o inimigo cometeu atrocidades e que o exército “humanitário” era amado pela população faz com que histórias de atrocidades façam parte da propaganda. Além disso, continua Morelli, a propaganda de guerra não se contenta com os incidentes reais, ela precisa inventar atrocidades desumanas para fazer o inimigo parecer o alter ego de Hitler.

Ela quase não vê diferenças na forma como as atrocidades são descritas em diferentes guerras. Para o período da Primeira Guerra Mundial, Ponsonby retrata o estupro coletivo, assassinato, maus-tratos e mutilação de crianças por soldados alemães. Morelli mostra como são semelhantes os relatos de guerras no Iraque, Afeganistão e Kosovo.

6 – O inimigo faz uso de armas ilegais

Morelli vê este princípio como um complemento ao anterior. “Não cometemos atrocidades, mas, pelo contrário, vamos guerrear com cavalheirismo, seguindo as regras, como num concurso, claro, são regras duras e masculinas”. Houve protestos furiosos na Primeira Guerra Mundial contra o uso de gás venenoso. Cada parte em conflito acusou a outra de tê-la iniciado. Embora ambos usassem o gás como arma e estivessem fazendo pesquisas nesse campo, era a expressão simbólica da guerra desumana. Portanto, conclui Morelli, foi atribuída ao inimigo como arma indecente e enganosa.

7 – Sofremos poucas perdas, as perdas do inimigo são consideráveis

Morelli explica esse princípio ou mandamento da seguinte forma: “Com raras exceções, as pessoas tendem a se unir à causa vitoriosa. No caso da guerra, a preferência da opinião pública depende muito dos resultados aparentes do conflito. Se os resultados não forem bons, a propaganda deve disfarçar nossas perdas e exagerar as do inimigo”.

Ela cita o fato de que já na Primeira Guerra Mundial as perdas se acumularam no primeiro mês e subiram para 313.000 baixas. Mas o Comando Supremo britânico nunca relatou a perda de um cavalo e não publicou uma lista dos mortos.

Morelli vê a guerra do Iraque como outro exemplo da proibição da publicação de fotografias de caixões de soldados americanos. As perdas do inimigo, no entanto, foram gigantescas, seu exército não ofereceu resistência. “Esse tipo de informação eleva o moral em ambos os campos e torna a opinião pública convencida da eficácia do conflito”.

8 – Intelectuais e artistas reconhecidos apoiam nossa causa

Morelli afirma que, desde a Primeira Guerra Mundial, os intelectuais apoiaram massivamente seu próprio campo. Cada partido de guerra contou com o apoio de artistas, escritores e músicos que apoiaram as preocupações de seus países por meio de iniciativas em seus campos de atuação.

9 – Nossa causa é sagrada

Esse critério é entendido por Morelli de duas maneiras diferentes: no sentido literal, a guerra se apresenta como uma cruzada, respaldada por uma missão divina. Não se deve fugir da vontade de Deus, deve-se cumpri-la. Essa visão ganhou nova importância desde que George W. Bush assumiu o cargo, afirma Morelli. A guerra do Iraque aparece nesta visão como uma cruzada contra o “eixo do mal”, como a “luta do bem contra o mal”. É visto como um dever levar a democracia ao Iraque, um valor que brotou diretamente da vontade de Deus.

10 – Quem duvida da nossa propaganda ajuda o inimigo e é um traidor

Este último princípio complementa todos os outros, explica Morelli. Quem questiona apenas um dos princípios é necessariamente um colaborador. Existem apenas duas áreas, boas e ruins. Você só pode ser a favor ou contra o mal. Os opositores da guerra do Kosovo são, portanto, cúmplices de Milošević. Grupos inteiros são considerados antiamericanos, Pierre Bourdieu, Régis Debray, Serge Halimi, Noam Chomsky ou Harold Pinter.

Assim, diz Morelli, fica impossível emitir opinião divergente sem correr o risco de um “processo de linchamento da mídia”. O pluralismo normal de opiniões não existe mais, toda oposição é silenciada e desacreditada por falsos argumentos.

Segundo Morelli, esse procedimento foi aplicado novamente na guerra do Iraque, embora o público mundial estivesse muito mais dividido do que no conflito de Kosovo. Ser contra a guerra significava defender Saddam Hussein. O mesmo desenho foi utilizado num contexto completamente diferente, nomeadamente durante a votação da Constituição Europeia. Ser contra a Constituição significava ser contra a Europa.

FONTE CONSULTADA:

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Romão
Romão
2 anos atrás

Curiosidade quase Off-topic:
Em vermelho, ao fundo do cartaz, a figura do meio retrata Alexander Suvorov, considerado o maior general russo no período Czarista. Foi professor de Mikhail Kutuzov que bateu-se com Napoleão mais de uma vez, inclusive em Austerlitz e Borodino.

Romão
Romão
2 anos atrás

Eu considero essa guerra como sendo a primeira guerra mundial-ocidental-moderna. É a primeira guerra onde as populações dos dois lados tem acesso à internet e, portanto, condições de contestar a mídia oficial-tradicional-hegemônica. Líbia/Síria/Isis eu desconsidero porque tratava-se claramente de cenários de insurgência e num contexto Ocidente X Oriente.

Patrício
Patrício
Reply to  Romão
2 anos atrás

E a Ucrânia e o Ocidente abusaram do direito de usar propaganda, baseada principalmente em fake news
Desde massacres encenados até ofensivas inexistentes.
Mas a realidade da guerra fala mais alto.

Andre
Andre
Reply to  Patrício
2 anos atrás

5 – O inimigo está cometendo atrocidades propositalmente; se estamos cometendo erros isso acontece sem intenção

Henrique USA
Henrique USA
2 anos atrás

Um ótimo livro para descrever e eleição presidencial 2022 no Brasil kkkk

Romão
Romão
Reply to  Henrique USA
2 anos atrás

E o período da república lava-jatista também.

RPiletti
RPiletti
Reply to  Romão
2 anos atrás

Tá criativo hein…

Santos
Santos
2 anos atrás

Um livro atual!

Hcosta
Hcosta
2 anos atrás

Isto dá para os dois lados mas lembro que isto é uma publicação do Partido Comunista Português que defende a invasão da Ucrânia.
Dá para perceber nos exemplos escolhidos a dedo e sem nenhuma referência à Rússia e desculpabilizando autores de genocídios.

A questão é quem limita a informação e não permite o contraditório…

Hcosta
Hcosta
Reply to  Hcosta
2 anos atrás

Como diz o livro isso vai sempre acontecer. O problema é impedir outras fontes de divulgarem a sua informação. Usando o mesmo exemplo do Iraque mas na 2ª guerra, seria o governo central dos EUA impedir a divulgação das notícias da Al-Jazeera, algo que tentaram fazer, mas que foi impedido pelos outros poderes. E no caso que referiu existe o risco de uma matéria desfavorável mas também o risco de o jornalista perder este acesso. Uma outra forma de censura e mais eficaz. E que acontece em muitos outros casos. Voltando ao início, é mais impedir outras fontes de comunicação.… Read more »

Andre
Andre
2 anos atrás

A autora defende o plurarismo mas usa, exclusivamente, EUA e RU como os maus exemplos.

Muito plural mesmo.

AMX
AMX
2 anos atrás

Post bem interessante, gostei!