Russos se recusam a lutar na Ucrânia

Por ser uma ‘Operação Especial’, militares russos que se recusam a lutar são dispensados apenas e não podem ser processados.

Quando os soldados de uma brigada de elite do exército russo foram instruídos no início de abril a se prepararem para uma segunda missão na Ucrânia , o medo irrompeu entre as fileiras.
A unidade, estacionada no extremo leste da Rússia em tempos de paz, entrou pela primeira vez na Ucrânia a partir da Bielorrússia quando a guerra começou no final de fevereiro e viu um combate acirrado com as forças ucranianas.

“Logo ficou claro que nem todo mundo estava de acordo com isso. Muitos de nós simplesmente não queriam voltar”, disse Dmitri, integrante da unidade que pediu para não ser identificado com seu nome verdadeiro. “Quero voltar para minha família – e não em um caixão.”

Junto com outros oito, Dmitri disse a seus comandantes que se recusou a se juntar à invasão. “Eles ficaram furiosos. Mas eles acabaram se acalmando porque não havia muito que pudessem fazer”, disse ele.

Ele logo foi transferido para Belgorod, uma cidade russa próxima à fronteira com a Ucrânia, onde está estacionado desde então. “Eu servi por cinco anos no exército. Meu contrato termina em junho. Vou cumprir o meu tempo restante e depois estou fora daqui”, disse ele. “Não tenho do que me envergonhar. Não estamos oficialmente em estado de guerra, então eles não poderiam me forçar a ir.”

A recusa de Dmitri em lutar destaca algumas das dificuldades militares que o exército russo enfrentou como resultado da decisão política do Kremlin de não declarar formalmente guerra à Ucrânia – preferindo descrever a invasão, que em breve chegará ao seu quarto mês, como operação militar”.

Sob as regras militares russas, as tropas que se recusam a lutar na Ucrânia podem ser dispensadas, mas não podem ser processadas, disse Mikhail Benyash, um advogado que aconselha os soldados que escolhem essa opção.

Benyash disse que “centenas e centenas” de soldados entraram em contato com sua equipe para obter conselhos sobre como evitar serem enviados para lutar. Entre eles estavam 12 guardas nacionais da cidade de Krasnodar, no sul da Rússia, que foram demitidos depois de se recusarem a ir para a Ucrânia.

“Os comandantes tentam ameaçar seus soldados com prisão se eles discordarem, mas dizemos aos soldados que eles podem simplesmente dizer não”, disse Benyash, acrescentando que não estava ciente de nenhum caso criminal contra soldados que se recusaram a lutar. “Não há base legal para iniciar um processo criminal se um soldado se recusar a lutar enquanto estiver em território russo.”

Muitos soldados, portanto, optaram por ser demitidos ou transferidos em vez de entrar “no moedor de carne”, disse ele.

Um relato semelhante ao de Dmitri foi dado ao serviço russo da BBC por Sergey Bokov , um soldado de 23 anos que no final de abril decidiu deixar o exército depois de lutar na Ucrânia. “Nossos comandantes nem discutiram conosco porque não fomos os primeiros a partir”, disse Bokov.

Apontando para as leis militares da Rússia, Benyash disse que seria mais difícil para os soldados se recusarem a lutar se a Rússia declarasse uma guerra em grande escala. “Durante a guerra, as regras são totalmente diferentes. A recusa, então, significaria penalidades muito mais duras. Eles estariam olhando para o tempo na prisão.”

Embora o número exato de soldados que se recusam a lutar ainda não esteja claro, essas histórias ilustram o que especialistas militares e governos ocidentais dizem ser um dos maiores obstáculos da Rússia na Ucrânia: uma grave escassez de soldados de infantaria.

Moscou inicialmente colocou cerca de 80% de suas principais forças de combate terrestre – 150.000 homens – na guerra em fevereiro, segundo autoridades ocidentais. Mas danos significativos foram causados ​​a esse exército, que enfrentou problemas logísticos, baixa moral e uma resistência ucraniana subestimada.

“Putin precisa tomar uma decisão sobre a mobilização nas próximas semanas”, disse Rob Lee, analista militar. “A Rússia carece de unidades terrestres suficientes com soldados contratados para uma rotação sustentável. As tropas estão ficando exaustas – eles não vão conseguir manter isso por um longo período.”

Lee disse que uma opção para o Kremlin seria autorizar o envio de unidades de recrutas para a Ucrânia, apesar das promessas anteriores de Putin de que a Rússia não usaria nenhum recruta na guerra. “Os recrutas podem preencher algumas das lacunas, mas serão mal treinados. Muitas das unidades que deveriam treinar recrutas estão lutando contra si mesmas”, disse Lee.

Mas sem batalhões de recrutas, a Rússia poderá em breve “lutar para manter o território que atualmente controla na Ucrânia, especialmente porque a Ucrânia recebe melhores equipamentos da Otan”, disse ele.

As autoridades russas aumentaram discretamente seus esforços para recrutar novos soldados, pois ficou claro que uma vitória rápida na Ucrânia era inatingível.

Uma investigação do serviço russo da BBC mostrou que o Ministério da Defesa da Rússia encheu sites de empregos com vagas, oferecendo a pessoas sem experiência de combate oportunidades de ingressar no exército em contratos lucrativos de curto prazo. Algumas grandes empresas governamentais receberam cartas instando-as a inscrever seus funcionários no exército.

A Rússia também recorreu a mercenários para reforçar seus esforços de guerra, enviando combatentes do obscuro grupo Wagner, ligado ao Kremlin .

Mas analistas dizem que recrutas voluntários e grupos de mercenários provavelmente não levarão a um aumento substancial no número de novos soldados, em comparação com os números que uma mobilização parcial ou total traria.

Apesar das especulações anteriores, Putin não declarou formalmente guerra à Ucrânia durante seu discurso no Dia da Vitória em 9 de maio.

Andrei Kolesnikov, membro sênior do Carnegie Endowment, disse que as autoridades podem estar preocupadas que uma mobilização geral antagonize grandes setores da população que apoiam a “operação especial”.

Os russos “podem ser a favor do conflito, mas na verdade não querem lutar”, disse ele, acrescentando que uma mobilização geral acarretaria “perdas colossais de soldados não treinados”.

E embora o status atual do conflito dê aos soldados russos um caminho legal para recusar a participação, alguns soldados reclamaram que isso também os levou a não serem adequadamente cuidados.

Um sargento disse que foi ferido durante um dos recentes ataques ucranianos no território da fronteira russa onde estava estacionado. Seus superiores argumentaram que ele não deveria receber a compensação monetária de até £ 2.500 que os russos feridos têm direito por lei porque sua lesão ocorreu em solo russo – o que significa que não se enquadra nas regras da “operação militar especial” da Rússia.

“É injusto, estou lutando nesta guerra assim como os outros na Ucrânia, arriscando minha vida”, disse o soldado. “Se eu não receber a compensação a que tenho direito em breve, irei a público e tornarei isso uma questão importante.”

FONTE: The Guardian