Putin testa realidade europeia
Durante muito tempo, EUA e Europa nutriram ilusões sobre a Rússia de Vladimir Putin – ilusões que agora foram despedaçadas na Península da Crimeia. Eles poderiam (e deveriam) saber: desde seu primeiro mandato como presidente russo, o objetivo estratégico de Putin foi reconstruir o status da Rússia como potência global.
Para tanto, Putin usou as exportações de energia da Rússia para recuperar gradualmente os territórios perdidos quando a União Soviética desmoronou, uma geração atrás. A Ucrânia estava no coração dessa estratégia porque, sem ela, o objetivo de uma Rússia revivida é inalcançável. Assim, a Crimeia é apenas o primeiro alvo – o próximo será o leste da Ucrânia e a persistente desestabilização do país como um todo.
Diante de nossos olhos, o sistema internacional pós-soviético na Europa Oriental, Cáucaso e Ásia Central está sendo derrubado. Conceitos da ordem internacional do século 19, que têm como base considerações de equilíbrios de poder de soma zero e esferas de interesse, estão ameaçando desbancar as normas modernas de autodeterminação nacional, inviolabilidade de fronteiras, o estado de direito e os princípios fundamentais da democracia.
Como consequência, essa reviravolta terá um impacto profundo na Europa e nas suas relações com a Rússia, uma vez que determinará se os europeus vivem segundo as regras do século 21. Os que acreditam que europeus e americanos podem se adaptar ao comportamento de Putin, como os apologistas ocidentais do presidente sugerem, arriscam-se a contribuir para uma nova escalda estratégica, porque uma atitude branda só fortalecerá o Kremlin.
Aliás, quer seus líderes saibam ou não, a União Europeia está em conflito direto com a Rússia sobre sua política de ampliação desde o fim da Guerra Fria. É por isso que o ressurgimento da Rússia como potência global requer não somente a reintegração de territórios soviéticos perdidos, mas também acesso direto à Europa e um papel dominante ali, especialmente na Europa Oriental. Dessa maneira, uma luta estratégica fundamental agora é um dado.
De uma perspectiva ocidental, um confronto deliberado faz pouco sentido porque União Europeia e Rússia são e continuarão sendo vizinhas. No futuro, a Rússia precisará do bloco ainda mais do que vice-versa, porque em seu extremo leste e na Ásia Central, a China está surgindo como uma rival de dimensões inteiramente diferentes.
Além disso, o rápido declínio demográfico e o enorme déficit de modernização da Rússia significam a necessidade de um futuro conjunto com a Europa, mas agarrar essa oportunidade só será possível com base no estado de direito – e não da força – e precisa ser norteado pelos princípios da democracia e da autodeterminação, não de políticas de grande potência.
Em vez disso, Putin desencadeou uma crise duradoura. A reposta de europeus e americanos será uma nova política de contenção, tomando a forma principalmente de medidas econômicas e diplomáticas. A Europa reduzirá sua dependência energética da Rússia, revisará seu alinhamento e suas prioridades estratégicas e reduzirá o investimento e a cooperação bilateral.
No curto prazo, Putin parece ter uma influência maior, mas a fraqueza de sua posição em breve se tornará visível. A Rússia é totalmente dependente, econômica e politicamente, de suas exportações de commodities e de energia, que vão principalmente para a Europa. Uma demanda europeia e um preço do petróleo menores que já não sejam suficientes para sustentar o orçamento da Rússia podem prejudicar o Kremlin muito rapidamente.
Aliás, há motivos para acreditar que Putin pode ter forçado a mão. O colapso da União Soviética, no início dos anos 90, não foi provocado pelas potências ocidentais, mas por uma onda de secessão, quando nacionalidades e minorias, vendo o Estado partidário enfraquecido, agarraram a oportunidade para se libertar.
A Rússia atual não tem a força econômica nem a política para recuperar e integrar os territórios soviéticos perdidos. Qualquer tentativa de Putin para prosseguir com seu plano empobreceria seu povo e conduziria a novas desintegrações – uma perspectiva sombria.
Segurança nacional
Os europeus têm razão de se preocupar. Eles agora enfrentam o fato de que a União Europeia não é apenas um mercado comum – uma mera comunidade econômica -, mas um ator global, uma unidade política coesa com valores e interesses de segurança compartilhados. Os interesses estratégicos e normativos da Europa ressurgiram, pois, com uma vingança.
De fato, Putin conseguiu, quase sozinho, revigorar a Otan com um novo senso de propósito.
A União Europeia terá de compreender que não está agindo num vácuo em sua vizinhança oriental e meridional e, pelo bem de seus próprios interesses de segurança, os pontos conflitantes de outras potências ali não podem ser simplesmente ignorados ou, pior, aceitos. A política de ampliação da UE não é um mero aborrecimento caro e dispensável – é um componente vital da segurança e da projeção de poder para fora dos limites do bloco, A segurança tem um preço.
Agora, haverá talvez uma reavaliação na Grã-Bretanha dos custos de uma eventual saída da União Europeia. E haverá talvez uma percepção no continente de que a unificação europeia precisa avançar mais rapidamente porque o mundo – e a vizinhança da Europa, em particular – se mostrou não tão pacífico como muitos, sobretudo os alemães, achavam que era.
O projeto de paz da União Europeia – o móvel inicial da integração europeia – pode ter funcionado muito bem. Após mais de seis décadas de sucesso, ele veio a ser considerado irremediavelmente datado. Putin proporcionou um teste de realidade. A questão da paz no continente voltou e precisa ser respondida por uma União Europeia forte e unida.
*Joschka Fischer foi ministro das Relações Exteriores e vice-chanceler da Alemanha entre 1998 e 2005.
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
FONTE: O Estado de S. Paulo