Inventores de guerras
A linguagem do ‘conflito étnico’ é arma eficiente no arsenal de elites políticas com interesses próprios
Demétrio Magnoli
“Eu não acredito em conflito étnico! Os grupos que atuam no Congo agem como criminosos por interesses próprios de poder e dinheiro.” Carlos Alberto dos Santos Cruz não é antropólogo, mas general. Contudo, a sentença do comandante brasileiro das forças de paz no leste do Congo, proferida dois meses atrás perante 15 embaixadores das potências do Conselho de Segurança da ONU num morro exposto ao sol escaldante, deveria ser inscrita, como um alerta, nos manuais universitários. Nela, encontra-se a chave para decifrar a violência não apenas no Congo, mas também no Sudão do Sul.
Segundo a narrativa convencional, o país é vítima de um conflito étnico entre os nuers, liderados pelo vice-presidente afastado Riek Machar, e os dinkas, representados pelo presidente Salva Kiir. Nessa forma de contar a tragédia, as noções de “tensão étnica” e “ódio étnico” emergem como dados da natureza: no fim das contas, imaginamos, as coisas são assim mesmo nesses lugares bárbaros… Ninguém registrou, entretanto, que os protagonistas principais do conflito –os dinkas– foram inventados como etnia separada menos de um século atrás, pela engenharia social do colonialismo britânico.
Tudo começou como um equívoco de um explorador europeu que, incapaz de entender a língua local, tomou o nome de um dos chefes tribais por denominação genérica de um povo, reunindo clãs distintos na “etnia” dinka. Depois, na década de 1920, enquanto missionários cristianizavam os nativos, regulamentos da autoridade britânica organizaram o Sudão Meridional em distritos administrativos de base étnica. A política colonial tinha a finalidade de separar fisicamente a população islamizada do norte sudanês dos grupos agropastoralistas do sul, traçando um limite para a influência árabe-muçulmana no vale do Nilo. Nela, encontram-se as sementes das duas guerras civis sudanesas que devastaram o país durante meio século, até a secessão negociada do sul, em 2011.
Os dinkas passaram a agir como uma comunidade étnica na hora da independência sudanesa, em 1956, por oposição ao regime pró-egípcio instalado em Cartum, e continuaram a fazê-lo nas guerras civis subsequentes. Nesse curto intervalo histórico, inventaram-se tradições imemoriais, descreveu-se uma cultura étnica específica e cultivou-se a crença de que Deus atribuiu aos dinkas a missão de governar a porção meridional do Sudão. O conceito de “identidade étnica”, estranho aos grupos que habitavam essa região do Nilo Branco no momento da colonização, converteu-se em ferramenta de coesão de uma elite que almeja controlar o aparelho estatal do Sudão do Sul.
Max Weber, que morreu em 1920, compartilhava o dogma de sua época sobre a existência de raças humanas. Contudo, não caiu no conto naturalista da etnicidade. Seu argumento era que a etnia origina-se da crença numa ascendência comum. Essa abordagem abriu-lhe a vereda para examinar as consequências de tal crença sobre as ações políticas individuais e coletivas. Mais tarde, sociólogos e antropólogos analisaram os processos de construção política da etnicidade em diferentes contextos sociais. O general Santos Cruz está certo: a linguagem do “conflito étnico” é uma arma eficiente no arsenal de elites políticas com “interesses próprios de poder e dinheiro”.
O leste do Congo não é Ruanda, que não é o Sudão do Sul –e, evidentemente, nenhum desses lugares se parece com o Brasil. Mas deveríamos prestar maior atenção nesses conflitos distantes, aprendendo alguma coisa com a “pedagogia da etnia” que, aplicada ao longo de décadas, ensinou as lições da identidade, da diferença e do ódio aos dinkas, aos hutus e aos tutsis. Sob o influxo das políticas de raça, nossas universidades e escolas incorporaram a linguagem envenenada dos inventores de guerras. O MEC tem razão: precisamos olhar mais para a África.
FONTE: Folha de São Paulo, via resenha do EB