Possível ataque à Síria não tem base jurídica

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Por João Ozorio de Melo

vinheta-opiniao-forteUma coisa é a “base humanitária”, que pode — ou não — justificar um ataque americano à Síria. Outra coisa é a “base jurídica”, para sustentar a decisão de atacar. Essa, definitivamente não existe, dizem juristas e professores de Direito americanos, além de uma leva de artigos e editoriais em jornais e sites dos EUA publicados no último fim de semana.

“É uma clara violação à lei internacional”, afirma, em editorial, o New York Times. “É inconstitucional”, do ponto de vista doméstico, dizem outras publicações. Só o Congresso pode autorizar ação militar. Mas essa é uma questão que pode ser contornada, se o presidente Barack Obama obtiver uma autorização do Congresso, o que ele anunciou que pode fazer no domingo (1/9).

A “base humanitária”, na visão do governo americano, foi alinhavada na sexta-feira (30/8) pelo presidente Obama. Para ele, “a decisão de agir é parte da obrigação dos EUA, como um líder mundial, de se certificar de que regimes sejam responsabilizados quando atacam seu próprio povo com armas proibidas pelas normas internacionais”. Segundo o presidente, “se prevalecer a percepção de que ninguém vai executar essas normas, as pessoas não vão levá-las a sério”.

Para o governo americano, pode ser a coisa certa punir o presidente da Síria Bashir al-Assad pela morte de 1,4 mil cidadãos sírios, vítimas de armas químicas. “Mas, dizer que é a coisa certa a fazer não garante a legalidade da ação”, diz o professor de Direito Matthew Waxman, uma das autoridades do Departamento de Estado dos EUA no governo Bush. O governo americano terá muita dificuldade para encontrar “base jurídica” para justificar a ação militar.

A ilegalidade do ataque provém, em primeiro lugar, de uma possível violação à Carta das Nações Unidas, dizem os jornais. A Carta prevê apenas duas situações em que um país pode atacar o outro: em legítima defesa, quando o país for atacado, ou com autorização do Conselho de Segurança da ONU, para manter a paz e a segurança.

Os Estados Unidos não foram atacados pela Síria e dificilmente vão obter autorização do Conselho de Segurança. A Rússia e possivelmente a China devem vetar qualquer resolução que se proponha a autorizar ataques aéreos ou invasão da Síria.

O artigo 39 (capítulo VII) da Carta das Nações Unidas contraria a declaração do presidente Obama de que os EUA, como um líder mundial, é obrigado a intervir na Síria. Na verdade, essa é uma função da ONU. O artigo diz: “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas (…)”.

Mesmo que se confirme a suspeita de que o governo sírio usou armas químicas, causou um grande número de vítimas e, por isso, violou leis internacionais, não haverá como sustentar juridicamente uma retaliação — mesmo que ela soe como humanitariamente justificável. A Síria é um dos poucos países que nunca assinou o Tratado de Armas Químicas da ONU. Assim, a Síria não pode ser responsabilizada pela quebra de um tratado que não assinou, dizem os juristas.

A Síria assinou a Convenção de Genebra e o Protocolo de Genebra — esse proíbe, especificamente, o uso de armas químicas em guerras com outros países. Não diz nada contra o uso de armas químicas contra o próprio povo, diz o professor de Política Ian Hurd.

“Em outras palavras, o governo americano se propõe a violar a legislação internacional para proteger uma legislação internacional que a Síria nunca se comprometeu oficialmente a cumprir”, diz o site Business Insider.

Do ponto de vista doméstico, também não há um precedente jurídico forte para justificar o ataque. Há precedentes considerados “ilegais”, diz o professor Matthew Waxman. Em 1999, o ex-presidente Clinton ordenou um ataque aéreo a Kosovo, com o apoio da NATO, justificado em bases humanitárias.

“Os EUA nunca declararam que a intervenção em Kosovo tinha sustentação jurídica. O governo americano declarou apenas que ela era justificada”, ele diz. O governo reconheceu que não havia uma base jurídica forte e declarou que a ação não deveria servir de precedente no futuro. Justificou a ação em fortes razões morais.

No caso da Síria, o governo americano dificilmente poderá alegar “fortes razões morais” para justificar o ataque, diz o Business Insider. “Em 1988, o então presidente do Iraque Saddam Hussein usou armas químicas contra os iranianos e também contra os curdos, dentro do próprio país, com conhecimento total do governo americano”, afirma a publicação.

Na época, não foi proposta qualquer intervenção no Iraque. Mais tarde, foi um dos fundamentos utilizados pelo governo Bush para tentar justificar a invasão do Iraque. O ex-presidente Bush também alegou legítima defesa para justificar a invasão ao Iraque, com a criação de um conceito inteiramente novo: o da defesa preemptiva. Ou seja, um país teria o direito de se defender, antes de ser atacado.

Na história recente, dois presidentes americanos usaram a justificativa da legítima defesa, prevista na Carta da ONU, para atacar outros países, relembra o New York Times. Em 1986, Ronald Reagan atacou a Líbia, em retaliação a um ataque com bomba a uma discoteca em Berlim. Em 1998, Bill Clinton atacou a Al Qaeda no Afeganistão e no Sudão, em retaliação a dois ataques com bomba a embaixadas americanas na África.

Segundo o jornal, esse “fundamento controvertido” não está disponível ao presidente Obama para atacar a Síria, por decisão presidencial. A Síria não atacou nenhum cidadão americano, nem qualquer propriedade americana.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 2 de setembro de 2013

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mbalbi69
mbalbi69
11 anos atrás

Quem realizou o ataque de gás, tinha autorização de alguém? Algum órgão? Os juristas são sensacionais!

Oganza
Oganza
11 anos atrás

Ok, os argumentos são jurídicos, mas acho que tem 2 pequenos gaps na opinião do Sr. Ozorio de Melo.

1 – Toda sua análise é pautada apenas nas Leis, Tratados e Convenções internacionais avaliando, do ponto de vista jurídico, as relações entre os países e seus direitos de atirar ou não pedras no telhado do vizinho.

2 – Pela 2ª(ou 7ª? não lembro mesmo) emenda da carta de atribuições do Presidente Americano para Defesa Nacional: O Presidente Americano em exercício, pode declarar e manter um estado de guerra por 10 dias contra QUALQUER país que ameace ou possa vir ameaçar a integridade da soberania americana ou a vida de cidadãos americanos dentro ou fora do País, sem assim estar infligindo nenhuma lei ou necessitar de aprovação prévia do Congresso.

Então fica a pergunta: Se em Justiça, quando há ruído entre leis, o que fica valendo é a Lei maior, qual é a Lei maior? A americana ou a carta da ONU?

Tenho certeza que se perguntarem para qualquer americano, a resposta será a Lei deles, assim como se fosse o Brasil e a pergunta fosse direcionada aos brasileiros, a resposta seria a mesma: a Lei brasileira.

Então só faltam a construção bem elaborado para um motivo.

Complicado, por favor os colegas advogados me ajudem, qual seria a Lei Maior nesse caso? Uma lei Nacional ou a da ONU?

Sds.

Jackal975
Jackal975
11 anos atrás

Oganza disse:
3 de setembro de 2013 às 1:28

“Então fica a pergunta: Se em Justiça, quando há ruído entre leis, o que fica valendo é a Lei maior, qual é a Lei maior? A americana ou a carta da ONU?
(…)
Complicado, por favor os colegas advogados me ajudem, qual seria a Lei Maior nesse caso? Uma lei Nacional ou a da ONU?”

[Tentando ser objetivo para evitar entrar em juridiquês, que seria maçante para quem não é da área:]
Cada estado soberano tem a sua Lei Maior (Constituição ou legislação que o valha) e deve obediência a ela, internamente (em tese, claro). Externamente, não há uma “lei maior internacional” a que todos os Estados devam obedecer. O que há são os tratados multilaterais e as convenções (entre outros institutos, que não cabe aqui elencar para não ficar chato), quem assinou, fica obrigado.
Quem não assinou, não está obrigado a obedecer.
Aí nesse vácuo entram os princípios do Direito Internacional. Quando não há tratado, convenção, etc., valerá o costume, o consenso, os princípios gerais do Direito em si, a jurisprudência internacional e em casos extremos, a arbitragem de um terceiro supostamente neutro.
E aqueles países que são filiados a ONU, TEORICAMENTE, deveriam usar das deliberações do Conselho para mediar seus conflitos. Isso tudo, num “mundo perfeito” e em relação a questões civis.
Tudo o que se referir a questões militares, de provável estado de guerra entre países soberanos, acaba sendo relativizado, porque quem quer ir à guerra não está preocupado com a autorização de terceiros.
Assim, em tese, no caso extremo, de intervenção militar, os partícipes da ONU deveriam obedecer ao que fosse decidido pelo CS, de forma unânime.
Isso tudo, claro, como eu disse, num “mundo perfeito”.
Na prática, acaba não sendo assim que ocorre, porque, como eu disse, quem quer fazer guerra, não pede licença. Em suma, grosso modo, é mais ou menos assim que funciona.

Wagner
Wagner
11 anos atrás

Oganza, a reportagem ja responde a seu item nº 2.

A Síria NÃO FEZ NADA CONTRA OS USA. Isso retira do presidente americano a autoridade para atacá-la.

Outra : OS AMERICANOS NÃO PROVARAM ATÉ AGORA que foi o Assad quem atacou com armas químicas.

Tudo o que temos é o Kerry tagarelando, de concreto não falou nada. Tagarelar por tagarelar, todos podem.

Como os USA tem as tais ” provas concretas ” se nem a ONU ainda as tem ???

É farsa completa; E ainda vão fazer a USN lutar a favor da Al Qaeda…

Muito bem Washington…