JAMES , TRAUB, FOREIGN POLICY, É JORNALISTA  – O Estado de S.Paulo

vinheta-clipping-forte1A semana passada foi marcada por abusos contra a democracia por líderes supostamente democráticos. O premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, usou a tropa de choque para esvaziar a Praça Taksim, em Istambul, que tinha sido tomada por manifestantes pacíficos, por ele qualificados de “vândalos” e “vagabundos”. O Senado egípcio aprovou uma lei que limita a ação de ONGs, e – segundo grupos da sociedade civil egípcia – “estabelecerá os alicerces de um novo Estado policial”. O projeto foi apresentado pelo presidente Mohamed Morsi, eleito democraticamente. Enquanto isso, centenas de milhares de brasileiros tomaram as ruas para protestar contra praticamente tudo – embora, no caso do Brasil, o governo tenha se mostrado mais perplexo do que enfurecido.

Os acontecimentos do Egito e da Turquia têm em comum uma forma peculiar de perversão da democracia: o autoritarismo eleitoral. Tanto Erdogan quanto Morsi tratam os seus seguidores – que provavelmente, em ambos os casos, não constituem a maioria absoluta – como “o povo” em nome do qual eles governam, e consideram os seus adversários como inimigos, rebotalho, como não cidadãos imbuídos de ideias ou dependentes de patrocinadores estrangeiros. E os líderes turco e egípcio não são os únicos.

Vladimir Putin, da Rússia, instalou uma ditadura em nome de sua base eleitoral nacionalista, assim como Hugo Chávez, na Venezuela, antes de morrer. A diferença é que ninguém considera a Rússia ou a Venezuela democracias, ao passo que os distúrbios na Turquia e no Egito ameaçam algo precioso, ou que pelo menos que inspira esperança.

Nem Erdogan nem Morsi foram tão longe quanto Putin e Chávez, embora o líder egípcio tenha chegado perto deles quando, em novembro, emitiu um decreto que isentava suas decisões do exame da Justiça, de forma que ele, temporariamente, reuniu em suas mãos os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (Morsi foi obrigado a recuar no mês seguinte). Mas ambos parecem sinceramente convencidos de que somente eles encarnam a vontade do povo. “(Dizem que) Tayyip Erdogan é um ditador”, afirmou o primeiro-ministro turco, referindo-se a si mesmo, em um discurso transmitido pela televisão. “Se eles chamam de ditador alguém que serve o povo, eu não posso dizer mais nada”. Brincando – muito habilmente – com o fogo do populismo, o premiê turco provocou manifestações em favor do regime, maiores ainda do que as realizadas na Praça Taksim, onde os seus adversários o atacaram como um novo autocrata.

Erdogan e Morsi, Chávez e Putin são megalomaníacos que não podem ou não querem distinguir entre “a vontade do povo” e sua própria. Mas essa é também uma doença das democracias jovens, nas quais o que está em jogo é tão importante que tanto o governo quanto a oposição frequentemente consideram o compromisso uma traição dos interesses nacionais.

Foi o que aconteceu até mesmo nas primeiras décadas de existência da República dos EUA. John Adams foi acusado por seus adversários de tentar restaurar a monarquia. Quando seu filho, John Quincy Adams, elegeu-se presidente, seus grandes rivais, Andrew Jackson e o vice-presidente John C. Calhoun, insistiram que ele planejava subverter a Constituição e impor um governo ditatorial. Adams e seus aliados estavam convencidos de que Jackson, se eleito, destruiria a União. O conceito de diferença legítima de opinião demorou muito para se firmar.

Consensos

Nações que tiveram a sorte de ter um Nelson Mandela ou um George Washington receberam uma lição duradoura sobre o uso democrático do poder. E quando, como na Europa Oriental depois da queda do Muro de Berlim, as democracias são construídas graças a compromissos entre os reformistas e a elite governante, todos têm a chance de aprender a arte do consenso. Mas, se o poder é conquistado pela ação revolucionária, como no Egito, a única lei que o povo conhece é a do vencedor que fica com tudo.

Como, então, os líderes aprenderão a representar todo um povo e não a facção que os elegeu? Evidentemente, não aprendem – mas os eleitores podem ensinar-lhes uma lição. Os sérvios uniram-se em 2000 para derrotar o líder autoritário populista Slobodan Milosevic, que forjou uma maioria política servindo-se de um nacionalismo virulento. Mas isso exige uma oposição unida e determinada, o que não ocorre com o Partido Popular Republicano, na Turquia, ou com a oposição à Irmandade Muçulmana, no Egito. Não é apenas o partido no governo, mas toda a cultura política das novas democracias que frequentemente favorece o autoritarismo eleitoral.

A cultura é importante, assim como as leis. No livro Modelos de democracia, o cientista político Arend Lijpart afirma que os governos democráticos obedecem a dois tipos básicos: majoritário, como o britânico, com fortes gabinetes que dominam a tomada de decisões, ou “de consenso”, no qual o poder é exercido por meio de coalizões.

Lijphart observa que, embora nas sociedades homogêneas todos os cidadãos possam se considerar razoavelmente representados por um sistema majoritário, o mesmo modelo em nações profundamente divididas por classe ou identidade “implica numa ditadura majoritária”. Ele defende uma lei eleitoral que garanta certa representação proporcional, governos de coalizão, um Legislativo realmente bicameral e dotado de verdadeiros poderes. Lijphart afirma que o modelo do consenso amplia a legitimidade democrática sem sacrificar a eficiência.

As leis eleitorais ajudam a explicar a diferença entre a maneira como Turquia e Brasil, duas democracias dinâmicas, reagiram aos protestos nas ruas. Enquanto Erdogan demonizou os seus inimigos, a presidente Dilma Rousseff elogiou os manifestantes, dizendo que eles despertavam o País para os seus graves problemas. O Brasil também enfrenta uma crise, mas não uma crise de representação, como acontece na Turquia. Larry Diamond, um dos mais importantes estudiosos da democracia em Stanford, destaca que tanto Dilma quanto seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva – muito próximo de Erdogan -, foram obrigados a firmar bem mais compromissos do que o premiê turco, pois governam por meio de coalizões.

Erdogan, do outro lado, controla uma maioria parlamentar, favorecido por uma legislação que exclui do Parlamento os partidos que recebem menos de 10% do total de votos. O sistema turco permite os piores impulsos de Erdogan. Trabalhar com partidos rivais poderia obrigá-lo a aprender algumas lições muito difíceis.

Nova cidadania

Democracias se consolidam graças à conjunção de boas leis e bons hábitos – Constituições e cultura. Frequentemente, fracassam antes de atingir esse ponto. No Egito, não é difícil imaginar um cenário em que o Exército retome o comando, em meio ao conflito entre Morsi, a oposição secular e o Judiciário. Assim, um comportamento prepotente dos que estão no poder enseja um comportamento prepotente das pessoas em geral; a democracia fracassaria e o Egito voltaria a uma nova versão do status quo – como o Paquistão, por exemplo.

Mas não é esse o cenário mais provável no Egito, e certamente não será na Turquia. A era na qual os cidadãos aceitam ou exigem a volta à autocracia está chegando ao fim. O que vemos nas manifestações de massa no Egito, Turquia, Brasil e em outros países é a determinação a não aceitar um compacto implícito no qual a cidadania democrática se limite ao voto – e a uma classe política paralisada que não sabe responder a essas reivindicações.

“A cada quatro anos realizamos eleições na Turquia e a nação fez a sua escolha”, disse Erdogan ao seu povo. Está errado. O autoritarismo eleitoral não funciona como deveria funcionar pois um número muito grande não aceita essa transação. A ditadura da maioria, ou da maioria hipotética, continuará em alguns países, como a Rússia. Mas seus dias estão contados na Venezuela e não vejo isso acontecer na Turquia.

O verdadeiro problema é que as democracias que se mantêm indiferentes provocarão mais protestos, o que provocará mais reação, enquanto as expectativas e o objetivo comum de nações como o Brasil e a Turquia darão lugar ao rancor e à divisão, levando a uma queda dos investimentos e da produtividade, e portanto a mais rancor e divisão.

No mundo árabe, somente a Tunísia aparentemente está superando as divisões entre os grupos para formar uma nova ordem mais viável. Egito e Líbia caminham para formas diferentes de disfunção democrática. Esses países precisarão de tempo para aprender novos hábitos e formular leis melhores.

O intelectual Samuel Huntington observou que a democracia nos EUA só se consolidou completamente quando o republicano Adams perdeu para o democrata Jackson, depois de que os jacksonianos, por sua vez, deixaram o lugar aos Whigs. A mudança é um tônico para a democracia. E, esperamos, será ali que Erdogan e Morsi provarão que não são nem Putin, nem Chávez. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

FONTE: O Estado de S. Paulo

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erabreu
erabreu
11 anos atrás

O que mais chama a atenção nos neo-facistas bolivarianos é que eles têm a certeza que governarão para sempre. Criaram um arcabouço “constitucional” (no Brasil ainda não), que permite ao governo o domínio do legislativo e do judiciário, maior até do que o que tiveram os regimes militares da região. Contudo, a maré parece estar virando, tanto na Venezuela, quanto no Brasil. Isso permite que novas lideranças que consigam aglutinar as massas (como fez Fernando Collor em 1989) assumam o cargo munidos de poderes quase ditatoriais. Abre-se a oportunidade de criar-se um MONSTRO CONSTITUCIONAL, que não terá pudores em esmagar… Read more »

Marine
11 anos atrás

Correcao:

John Adams era do antigo partido Federalista e Thomas Jefferson foi eleito presidente como candidato do partido Democrata-Republicano.