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ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO

vinheta-clipping-forte1A intervenção francesa no Mali tem origem na disputa por riquezas minerais–urânio para as usinas nucleares francesas, por exemplo– e na herança colonial da região. Fronteiras artificiais impostas pelas potências no século 19 fraturaram povos, gerando insatisfações.

A análise é do historiador Elikia M’Bokolo, 68, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris, e professor da Universidade de Kinshasa (Congo). Para ele, há “um novo imperialismo”, no qual as velhas potências europeias precisam lidar com o apetite de emergentes como a China.

Bokolo, congolês especializado em temas do pan-africanismo, diz que a crise no Mali pode se reproduzir com a mesma violência nos países vizinhos, como Niger, Mauritânia e Chade. Isso porque, a guerra atual também é consequência “da estupidez do Ocidente” ao derrubar Muammar Gaddafi.

Nesta entrevista, concedida por telefone de Paris, o historiador fala da oposição à guerra na França, onde ainda paira a síndrome do Vietnã. E alerta para assassinatos de tuaregues em vilas: “Não se pode transformar essa guerra numa guerra cultural e religiosa”, afirma.

Folha – Como o sr. analisa a situação no Mali?

Elikia M’Bokolo – É fluida e incerta. A ação francesa é uma intervenção de uma antiga potência colonial. Tem uma imagem negativa para os africanos e malianos.

Quais são as causas do conflito?

Há várias razões. A primeira é que essa grande região –que vai da Mauritânia ao Chade até a Etiópia– é muito instável, com uma população nômade. Esta teve um papel histórico muito importante no passado, fazendo as trocas entre a África negra e a África árabe, mediterrânea.
Com as fronteiras coloniais, a população se fracionou em muitos Estados. É um primeiro ponto de descontentamento. Essa população sonha em refazer uma junção territorial. Assim, haveria liberdade de movimento, sem as limitações de fronteiras impostas pela colonização.

Quais são as outras razões?

Depois da colonização e, sobretudo, depois dos anos 1960, o novo poder africano reteve a lógica territorial colonial. Toda essa população, considerada periférica e marginal pelas potências colonizadoras, hoje em dia reivindica uma situação melhor do ponto de vista político e social.
A terceira razão é o apetite das potências capitalistas desenvolvidas por essa região desértica. É sabido já há algum tempo que ela tem petróleo, gás natural, urânio. E também o sol. Antes da intervenção francesa, a Alemanha tinha começado a desenvolver uma ideia de gerar eletricidade a partir da energia solar e transportá-la para a Europa.

Qual a razão mais importante?

Os países ocidentais têm interesse em colocar ênfase sobre o lado étnico, religioso, de instabilidade. Nada falam sobre a economia, os recursos naturais.
Esse é o lado importante. As grandes empresas francesas estão no Mali, no Niger. A maior parte da eletricidade produzida pelas centrais nucleares francesas é feita com o urânio que vem da África. Todo mundo sabe que a região é um reservatório importante de minerais.

A França fala da ação de radicais, da Al Qaeda. É ficção?

Não é tudo ficção. É verdade que o Mali é um país muçulmano há dezenas de séculos. Mas lá o islã  sempre foi moderado. Há uma grande tolerância em relação àqueles que não praticam a religião. O consumo de álcool, por exemplo, é permitido. O islã não é uma razão importante [para o conflito], mesmo que exista um certo número de muçulmanos que têm um ponto de vista extremista, da Al Qaeda ou de outros grupos islâmicos. Não se pode transformar essa guerra numa guerra cultural e religiosa.

A França advoga que há uma ameaça.

A França tem uma posição ambígua em relação à África. Mesmo um presidente socialista como François Hollande adota esse discurso civilizatório, de que há risco, ameaça, violação de direitos humanos, despeito à constituição democrática. Tudo é discurso para a opinião pública. Na verdade as questões são mais complexas. O governo francês joga em duas linhas: a ideológica, quase moral, e a linha econômica e financeira em defesa de seus interesses.

A França tem o direito de intervir no Mali?

Não. Os países africanos começam agora a se apressar para organizar tropas.

Opération Serval Mali Janvier 2013

É certo considerar que existe uma guerra imperialista em curso?

Sim. A África hoje é o continente que tem mais recursos naturais, alguns extremamente raros e os países europeus desenvolvidos querem essas riquezas.

E os chineses?

São recém-chegados. O grande medo do Ocidente é que coloquem as mãos sobre esses recursos. Para que a China não esteja lá, se multiplicam uma série de práticas. Uma delas são as intervenções chamadas de humanitárias. Também há o estímulo a guerras civis e a guerras separatistas, para que ocorram situações em que as empresas ocidentais possam utilizar esses recursos. A guerra econômica avança mascarada. Falamos todo o dia de guerras étnicas, humanitárias. Mas as questões são econômicas. É um novo imperialismo, no qual o velho imperialismo do mundo ocidental tem que lidar com o apetite dos países emergentes, sendo a China o principal exemplo.

Como é esse novo imperialismo em comparação com o do século 19?

No século 19 as potências coloniais não conheciam os recursos que estavam no subsolo. Hoje, conhecem. Sua estratégia é dizer que a África em geral pertence ao Ocidente. E que a China –e, depois de amanhã, a Índia, o Paquistão, Turquia, talvez o Brasil– e esses outros países emergentes não têm nada a ver com a África. Isso, eventualmente, pode até desandar num conflito de caráter mundial entre a China e as velhas potências.

Isso seria possível?

Não creio que seja imediatamente possível, mas não estou convencido de que isso seja impossível. Todas essas potências que atuam no continente africano são superarmadas, têm arsenais importantes, bombas atômicas. Nós, africanos, não temos nada.

O que vai acontecer? A guerra será longa? Os EUA vão intervir?

É difícil a situação. A França conseguiu assegurar um número de pontos com cerca de 2.000 soldados. É preciso lembrar que a região é quase desértica. Apesar da experiência colonial da França nesse ambiente, os rebeldes conhecem melhor o lugar do que as tropas francesas.
A opinião pública e parte da classe política francesa –à direita e a esquerda– começaram a dizer que a guerra dura muito. Há o temor de um novo Vietnã. A síndrome do Vietnã está nas mentes. Há também os problemas propriamente franceses: a crise econômica, o desemprego, a inseguridade. Alguns dizem que o governo deveria cuidar desses problemas antes de qualquer coisa.
Não estou certo de que os Estados Unidos irão intervir. A França é o único país que tem na região um número considerável de cidadãos. Não creio que os EUA e a União Europeia se envolvam numa guerra tão incerta. Não é normal que, depois de 50 anos depois da independência, as antigas potências coloniais façam ações pela ordem e pela lei na África Ocidental.

A pressão interna na França contra a guerra vai aumentar?

Sim. Porque o presidente socialista teve posições contra a Françafrique [ação neocolonial da França na África]. Se a guerra durar muito tempo, as pessoas vão começar a se interrogar sobre as suas razões. A esquerda radical, com Jean-Luc Mélenchon [candidato da Frente de Esquerda nas últimas eleições, ele obteve 11% dos votos], disse que essa intervenção se parece muito com a Françafrique.
Não sei se pode dizer isso já. A ação no Mali pode isolar o governo atual em relação à esquerda. E também em relação aos ecologistas. Ao mesmo tempo, a direita e a extrema direita vão jogar para defender os interesses de certas empresas de urânio, de minerais etc. É uma situação muito difícil, e o governo francês vai querer fazer a operação militar o mais rapidamente possível.

O conflito está relacionado com a derrubada de Gaddafi?

A questão não é étnica, dos tuaregues. É verdade que, quando a França e os outros países decidiram eliminar Gaddafi e o assassinaram, não puderam conter todas as consequências dessa intervenção. O regime de Gaddafi representava um ponto de estabilidade na África do Norte, mas também era a passagem entre a África subsaariana e a mediterrânea. Derrubando Gaddafi e improvisando essa situação supostamente democrática –mas que não representa ninguém–, eles destruíram o Estado da Líbia. Destruíram o controle sobre as armas, a circulação de pessoas, os serviços de segurança etc. As armas reativamente sofisticadas, os veículos militares estão nas mãos de grupos armados, que sabem que ninguém controla essa região há muito tempo.
A guerra do Mali é uma consequência do afundamento do regime de Gaddafi. É uma consequência da estupidez do Ocidente. Estão perto de tombar sobre os próprios pés. O que se passa no Mali hoje pode se reproduzir amanhã com a mesma violência no Niger, na Mauritânia, no Chade, e ninguém tem o poder de controlar isso.

Como reage a população do Mali?

A população é muçulmana e pratica um islamismo muito moderado há muito tempo. A presença importante dos tuaregues nesse conflito –e eles não estão sozinhos– representa um risco extremamente grave. Há tuaregues que não tem nada a ver com isso, são livres, independentes. Isso pode levar até a um tipo de racismo. É particularmente sério o que já começou a ser visto em um certo número de vilas. Há mortes, assassinatos de tuaregues. Isso pode se enraizar na região e durar dez, 20, 30 anos, pois é uma região muito difícil de controlar.
E a solução das armas não é a verdadeira solução. A solução é política, democrática, com uma nova forma de Estado, descentralizado, dando possibilidade para a população dividida pelas fronteiras coloniais se organizar e tornar possível uma integração.
A crise atual no Mali mostra que os africanos precisam superar as divisões. São mais de 50 Estados. Não é possível. No Mali é necessário ouvir o que sindicatos, ONGs, intelectuais têm a dizer. Uma parte desses líderes se opõe à intervenção francesa e prefere uma solução africana. Não é normal que um estrangeiro entre na nossa casa, que ataque o nosso próprio irmão.

FONTE: Folha de S. Paulo

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