Intervenção humanitária: ordem/desordem mundial
(Henry Kissinger – Clarín, 14) 1. O conceito moderno de ordem mundial surgiu em 1648 com o Tratado de Westfalia, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. Nesse conflito, dinastias rivais enviaram exércitos através das fronteiras para impor normas religiosas opostas. Esta versão de mudança de regime provocou a morte de quase um terço da população da Europa Central no século XVII.
2. Para evitar uma repetição daquela carnificina, o Tratado de Westfalia separou a política nacional da internacional. O estado, construído sobre a base de unidades nacionais e culturais, foram considerados soberanos dentro de suas fronteiras. A política internacional foi limitada à interação deles através das fronteiras estabelecidas. Para os fundadores, os novos conceitos de interesse nacional e equilíbrio de poder constituem uma limitação, e não uma expansão, do papel da força. Substituíram a conversão forçada das populações pela conservação do equilíbrio.
3. O sistema westfaliano se espalhou por todo o mundo por obra da diplomacia europeia. Embora exigido pelas duas guerras mundiais e pela ascensão do comunismo internacional, o estado-nação soberano sobreviveu, mesmo que vagamente, como unidade básica da ordem internacional. O sistema de Westfalia nunca foi plenamente aplicável ao Oriente Médio. Apenas três dos estados muçulmanos da região tinham uma base histórica: Turquia, Egito e Irã. As fronteiras dos demais refletiam a divisão dos despojos do extinto Império Otomano entre os vencedores da Primeira Guerra Mundial, para além das divisões étnicas ou sectárias. Essas fronteiras, desde então, já foram submetidas a repetidos questionamentos, muitas vezes militares.
4. A diplomacia gerada pela Primavera Árabe substitui os princípios westfalianos de equilíbrio, por uma doutrina generalizada de intervenção humanitária. Os conflitos civis são vistos internacionalmente através de prismas de interesse democrático ou sectário. As potências externas exigem que o atual governo negocie com seus opositores, a fim de transferir o poder. Mas como para ambas as partes a questão geralmente trata de sua sobrevivência, estes pedidos caem em ouvidos surdos.
5. Quando as partes têm poder comparável, necessita-se certo grau de intervenção externa, incluindo a força militar, para romper o impasse. Os imperativos estratégicos tradicionais não desapareceram. A mudança de regime, quase por definição, cria um imperativo de construção da nação. Na falta disso, a ordem internacional começa a se desintegrar.
6. Os espaços que indicam anarquia poderiam tornar-se dominantes no mapa, como aconteceu no Iêmen, Somália, Líbia e noroeste do Paquistão, e poderia acontecer na Síria. O colapso do Estado pode transformar o território em uma base para o terrorismo ou o fornecimento de armas contra os vizinhos que, na ausência de qualquer autoridade central, não teriam meios de neutralização.
7. Não podemos nos permitir ser empurrados para uma participação militar em um conflito que está tendo cada vez mais um caráter sectário. Ao reagir a uma tragédia humana, devemos ter o cuidado de não facilitar outra.