A Líbia, a Otan e o Grande Médio Oriente
“Se aqui e no exterior todos perceberem que estamos prontos para a guerra a qualquer momento, com todas as unidades das nossas forças na linha de frente prontas para entrar em combate e ferir o inimigo no ventre, pisoteando-o quando estiver no chão, para ferver seus prisioneiros em azeite e torturar suas mulheres e filhos, então ninguém se atreverá no nosso caminho”. John Arbuthnot Fisher, primeiro Lord do Almirantado da Marinha Real Britânica, (cit. in Norman Angell, A Grande Ilusão, Editora UNB, 2002, p: 275)
É preciso ser muito ingênuo ou mal informado para seguir pensando que a “Guerra da Líbia”, foi feita em nome dos “direitos humanos” e da “democracia”. E ainda por cima acreditar que o governo de Muamar Gadafi foi derrotado pelos “rebeldes” que aparecem nos jornais em poses publicitárias. Tudo isso enquanto a aviação inglesa comanda o ataque final das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) à cidade de Sirta, depois de ter conquistado a cidade de Trípoli. Até o momento, a “primavera árabe” não produziu nenhuma mudança de regime na região, mesmo na Tunísia e no Egito, e não há nenhuma garantia de que os novos governos sejam mais democráticos, liberais ou humanitários que seus antecessores. Até porque, quase todos os seus líderes ocuparam posições de destaque nos governos que ajudaram a derrubar, com o apoio de uma multidão heterogênea e desorganizada. Sendo que, no caso da Líbia, não se pode nem mesmo falar de algo parecido a uma “mobilização massiva e democrática” da oposição, porque se trata de fato de uma guerra selvagem e sem quartel, entre regiões e tribos inimigas, que foram mobilizadas e “pacificadas” transitoriamente, pelas forças militares da Otan.
Na Líbia haverá um período de caos, seguido da formação de um governo de coalizão tribal e instável
Segundo Lord Ismay, que foi o primeiro secretário-geral da Otan, o objetivo da aliança militar criada pelo Tratado do Atlântico Norte, assinado em 1949, era “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo”. E esse objetivo foi cumprido plenamente, durante todo o período da Guerra Fria. Mas depois de 1991, a Otan passou por um período de “crise de identidade” e redefinição do seu papel dentro do sistema internacional. Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação de alguns países da Europa Central que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia.
Além disso decidiu participar diretamente das Guerras do Kosovo e da Sérvia. E ao mesmo tampo, lançou, em 1994, um projeto de intercâmbio militar e de segurança, com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”. Dez anos depois, na sua reunião de cúpula de 2004, em Istambul, os dirigentes da Otan decidiram expandir o seu projeto de segurança e criaram a “Iniciativa de Cooperação de Istambul” (ICI), voltada para os países do Oriente Médio. Além disso, nesse mesmo período, a Otan, que não havia apoiado as guerras do Afeganistão e do Iraque, decidiu aderir e colocar-se ao lado das tropas anglo-americanas, instalando suas forças também na Ásia Central.
Foram os ingleses que cunharam o termo “Oriente Médio”, para referir-se aos territórios situados no meio do seu caminho, entre a Inglaterra e a Índia, e que pertenciam ou estavam sob a tutela do Império Otomano. Incluindo os territórios que foram retalhados e divididos depois do fim da 1ª Guerra Mundial, sendo transformados em “protetorados” da Inglaterra e da França, que já eram, naquele momento, as duas maiores potências imperiais da Europa, tendo submetido e colonizado a maior parte da África Subsaariana e todos os países árabes do norte do continente, hoje incluídos no “Diálogo Mediterrâneo” da Otan.
Mas foi o presidente dos Estados Unidos, George Bush, quem cunhou o termo “Grande Médio Oriente”, apresentado pela primeira vez na reunião do G-8, realizada em Sea Islands, nos Estados Unidos, em junho de 2004. A ideia era definir e unificar um novo espaço de intervenção geopolítica, que iria do Marrocos até o Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das grandes potências, na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”, e a favor da “democracia” e dos “direitos humanos”. Dessa perspectiva se pode compreender melhor o significado geo-estratégico da “primavera árabe”, e da Guerra da Líbia.
Assim mesmo, o que se deve esperar que ocorra depois da guerra? Na Líbia, haverá um longo período de caos, seguido da formação de um governo de coalizão tribal, instável e autoritário, sob o patrocínio e a tutela militar da Otan. Ao mesmo tempo, terá sido dado um passo decisivo na construção de uma força de intervenção “ocidental”, capaz de projetar seu poder militar sobre todo o território islâmico do Grande Médio Oriente. E de passagem, estará criado o primeiro “protetorado colonial” da Otan na África. Triste sina da África!
José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro “O Poder Global”, da Editora Boitempo, 2007. Escreve mensalmente às quartas-feiras.
FONTE: Valor Econômico