Após libertação, repórter do ‘Estado’ conta como foram os dias na prisão líbia
Após oito dias em uma cela, sozinho e incomunicável, sem contato com a luz do sol, pedi para falar com o oficial responsável pela instalação militar para onde havia sido levado. Queria, pela milésima vez, perguntar o que aconteceria comigo, se poderia falar com o embaixador brasileiro, quando seria libertado. Com o rosto parcialmente coberto, o oficial do comando me disse: “Esqueça isso, você não vai falar com embaixador nenhum e só sairá daqui quando toda violência na Líbia tiver terminado”.
Eu e o repórter Ghaith Abdul-Ahad, do jornal britânico The Guardian, preso comigo no dia 2, permanecemos em celas separadas. Eu ficava numa sala ampla, mas isolado por barras de ferro. O único momento em que sofri maus tratos físicos nas mãos das forças de Muamar Kadafi foi no instante da prisão, na cidade de Sabratha, oeste da Líbia. Levei uma coronhada de um miliciano e o golpe me deixou tonto por alguns minutos. Tive também problemas de audição ao longo do dia. Mas, fora isso, não houve violência física.
O que, sim, eu sofri ao longo dos últimos oito dias foi um flagelo psicológico por estar incomunicável. Todas as pontes que se pode estabelecer com o mundo foram cortadas. Não sabia onde estava, nem quando sairia. Não tinha condição de fazer contato com nenhuma autoridade, muito menos de convencer líbios a avisar uma embaixada – do Brasil, da Grã-Bretanha, do Iraque (país de Abdul-Ahad). Nem podia conversar, pois não falo árabe.
Foram oito dias de um vazio de informação apavorante. Não seria capaz de descrever a carga de estresse que isso provoca.
Fui levado ontem, vendado, da prisão para uma casa no centro da capital e entregue ao embaixador do Brasil, George Ney de Souza Fernandes, sob uma condição: minha imediata saída da Líbia. Os líbios deixaram isso muito claro. Não era minha intenção deixar a Líbia neste momento. O que eu queria era continuar trabalhando aqui em Trípoli com a autorização do governo. Aparentemente, isso não seria possível. Então eu aceitei a condição e devo deixar a Líbia hoje pela manhã. Fui abrigado na residência do embaixador, onde devo passar a noite. Amanhã, devo pegar um voo pela manhã para Dubai e, em seguida, Paris, onde vivo com minha namorada. Meu estado de espírito… Ontem foi a primeira vez que senti o vento soprando no meu rosto depois de oito dias. Foi indescritível.
Momento da prisão. Entre terça-feira e quarta-feira, eu e Abdul-Ahad tentamos bolar um plano para chegar a Trípoli. Era esse nosso objetivo. Mas a cidade está cercada por um anel militar que a protege dos insurgentes, repleto de postos de controle. Para conseguirmos chegar à capital, precisaríamos da ajuda de pessoas comuns, que poderiam evitar essas barreiras. Sabíamos que, se fôssemos parados, acabaríamos presos.
Na quarta-feira à noite fizemos uma tentativa saindo da cidade de Sabratha, passando por Zawiya para chegar até Trípoli. Era algo delicado, porque Sabratha era uma cidade pró-Kadafi. Nos aproximamos da periferia de Zawiya e, no último posto de controle antes da cidade, vimos que nosso plano estava falhando. Havíamos passado duas vezes por uma barreira menor e isso despertara suspeitas. Abortamos a iniciativa e, naquele momento, só tínhamos uma opção: voltar para Sabratha, controlada por Kadafi.
Fomos à cidade para passar a noite. No dia anterior, havíamos nos abrigado em uma fazenda ali perto. Uma vez no centro de Sabratha, eu e Ghaith tivemos um diálogo muito transparente. Um disse para o outro: o risco de sermos traídos ou flagrados aqui é grande. Duas horas depois, chegaram os milicianos.
Não sabemos como nos acharam. Podemos ter sido traídos pelo dono da casa que estava nos hospedando ou por um amigo dele, que depois soubemos que era miliciano. Ou então porque o celular do embaixador brasileiro está sendo monitorado. É possível que, depois de uma conversa com o diplomata, o governo líbio tenha rastreado meu celular até uma área onde nós deveríamos estar. Naquela noite, o homem que nos hospedava nos expulsou de lá.
No instante em que os milicianos pró-Kadafi nos prenderam, fomos informados de que não tínhamos o visto de permanência em território líbio. Por trás dessa questão burocrática, havia a clara intenção de impedir que nós, jornalistas, mostrássemos ao mundo a realidade de uma área em disputa entre o governo de Kadafi e rebeldes, como era o oeste da Líbia.
Fomos entregues pelos milicianos a agentes do serviço secreto e da polícia, que já foram muito mais amistosos. Eles nos interrogaram ao longo da madrugada, explicamos a situação e pedimos para que eles entrassem em contato com o embaixador brasileiro, que comprovaria nossa história. A polícia dizia “amanhã de manhã vamos falar com o embaixador e, então, vocês poderão ir para Trípoli trabalhar legalmente”. Mas, nesse meio tempo, houve uma ordem para que fôssemos entregues às Forças Armadas.
No fim da manhã de quinta-feira, os militares assumiram nossa custódia e aí começou uma relação muito mais hostil. Foi aí que passamos os oito dias isolados do mundo, em um posto militar provavelmente nos arredores de Trípoli.
Depois desses oito dias de agonia, eles me levaram a essa casa no centro da capital, provavelmente do serviço secreto. Fiquei esperando lá por cerca de uma hora até a chegada do embaixador Fernandes.
A situação no aeroporto daqui ainda está muito conturbada. Voos são cancelados e confirmados de uma hora para outra. Vou retornar a Paris, onde vivemos eu e minha namorada, com quem decidi casar em dezembro no Brasil.
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FONTE: estadao.com