Entrevista de Salvador Ghelfi Raza na revista ‘Isto É’
‘A Guerra de Obama não é a de Bush’
Brasileiro que participa da reestruturação da política de defesa dos EUA diz que americanos usarão menos força militar para defender seus interesses no mundo
Claudio Dantas Sequeira
O analista de segurança nacional Salvador Ghelfi Raza é o único brasileiro a integrar a equipe contratada pelo governo Barack Obama para propor uma reforma profunda na política e, também, nos métodos utilizados pelos Estados Unidos mundo afora. São 30 Ph.D.s, os melhores cérebros do mundo em análise de segurança, defesa e diplomacia. Ao lado de Raza, além dos americanos, há ingleses, paquistaneses, suíços e uma mexicana. Raza é doutor em estudos estratégicos pela UFRJ com pós-doutorado em estudos de defesa na National Defense University, em Washington, onde leciona. Ressaltando que não fala em nome do governo, mas em caráter pessoal, Raza diz que há em curso uma “revolução” que dará um novo perfil às ações externas daquele país. “Para enfrentar o terror, não basta comprar mais scanners para os aeroportos. A guerra mudou, o papel das Forças Armadas também”, diz. No início do mês, começaram a circular internamente os primeiros rascunhos do que promete ser a maior mudança estrutural no setor desde a criação da CIA, a agência de inteligência americana, no final da década de 40.
Como é o trabalho que o sr. está desenvolvendo em Washington?
Salvador Ghelfi Raza – Estou trabalhando no desenvolvimento da nova metodologia que será usada para ações estratégicas das agências do governo americano em outros países. É um planejamento a longo prazo. Estamos falando de redesenhar a arquitetura de relacionamento das agências de desenvolvimento, de defesa e de inteligência. O objetivo é reunir as principais agências envolvidas num único esforço coordenado de formulação de políticas, desenho integrado de estratégias e gestão coordenada de projetos. Meu núcleo trabalha na vertente do desenvolvimento, capacitando planejadores seniores na área de segurança para que essas pessoas possam integrar equipes de estabilidade e reconstrução em várias partes do mundo. Faz parte de um movimento novo no governo americano para reduzir as barreiras entre as agências, evitando erros como os que permitiram a tentativa de atentado terrorista no último Natal, planejado pela Al-Qaeda.
Essa tentativa de atentado revelou fragilidades na segurança dos EUA parecidas com as que permitiram os ataques de 2001. A reforma executada por Bush não resolveu?
Salvador Ghelfi Raza – Há uma semelhança nos dois casos, sim. Após os atentados de 11 de setembro, houve uma grande reforma centrada na gestão das informações de inteligência. De qualquer maneira, o que ocorreu no Natal aqui, ou no Afeganistão e no Iêmen, não se resolve aumentando o número de máquinas que vão fazer o scanner de pessoas nos aeroportos. É preciso atuar nos fundamentos. Em como o governo se organiza, em como as decisões são tomadas, que políticas podem ser mais efetivas e quais elementos das estratégias se tornaram obsoletos. Na segunda-feira 11, tivemos uma reunião de cinco horas sobre novos parâmetros analíticos para definir o que é um conflito. Se os critérios atuais estão corretos. Daí, podemos olhar para Honduras e avaliar que não há ali um conflito. Reduz-se, assim, o afã operacional.
No caso hondurenho, os EUA foram criticados pelo Brasil exatamente por não agir.
Salvador Ghelfi Raza – O silêncio não significa inação. O Brasil age muitas vezes como aquele garoto cheio de energia que mete os pés pelas mãos. Os EUA estão numa posição mais sênior, de avaliar se uma ação se justifica ou não. Não é dar menos importância, mas evitar ações tempestivas.
Não é nada fácil mudar a cultura de um país e toda uma burocracia. Será possível fazê-lo nos EUA de Obama?
Salvador Ghelfi Raza – É difícil em todo lugar, mas, ao contrário do que parece, a cultura de mudança existe nos EUA. O difícil é saber para qual direção mudar, que tipo de mudança pode gerar um diferencial de resultados. Não é simplesmente criar ou substituir agências ou departamentos. Embora a dinâmica de mudanças tenha se iniciado na era Clinton e se aprofundado com Bush, no caso de Obama ela é substancialmente diferente. Enquanto no governo Bush a diretriz política era formulada em alto nível, de forma centralizadora, puxando para cima o núcleo de decisão, no caso Obama há uma descentralização e delegação de autoridade. Quando se faz isso, vem à tona uma série de fragilidades de planejamento estratégico, e surgem problemas que pareciam não existir antes. Há aspectos positivos e negativos nesse processo.
A ambiguidade na política externa de Obama seria um desses aspectos?
Salvador Ghelfi Raza – Sim. E isso eles querem corrigir. Uma das coisas para as quais precisamos tirar o chapéu e reconhecer é o esforço. Quem está de fora não imagina o que está sendo feito, os bilhões de dólares que estão sendo gastos para reparar de forma discreta, mas forte, a máquina decisória. Não é mudar pessoas, mas saber por que não funciona, qual a lógica articulante do sistema.
Dessa estratégia, o que o sr. pode detalhar?
Salvador Ghelfi Raza – Haverá um redesenho das competências de segurança no país, com a criação de um núcleo organizacional de defesa fortemente orientado na integração das agências de inteligência, as de controle dos UAVs (aviões não tripulados), a Força Aérea e as Forças Especiais. Haverá um outro núcleo, de segurança civil, uma espécie de grande Gendarmeria, onde estarão as agências de desenvolvimento. Hoje há três dimensões de ação: no Departamento de Defesa; no Departamento de Estado e no Departamento de Segurança Interna. É como se pegassem as Forças Armadas, as polícias, a inteligência, as agências de fomento, botassem tudo num liquidificador, retirassem os vínculos e separassem em dois. É um esforço enorme, caríssimo, e os primeiros rascunhos já saíram no início de janeiro. O que se antecipa é uma mudança estrutural sem precedentes.
Quando Obama dobra as tropas no Afeganistão não está imprimindo sua digital na guerra ao terror de Bush?
Salvador Ghelfi Raza – Não vejo assim. O governo Obama está repensando as estratégias usadas contra o terror. A guerra ao terror de Obama não é a de Bush. Existe um fenômeno chamado terrorismo, que foi enfrentado de uma certa maneira. O propósito de enfrentá-lo continua, mas as estratégias estão sendo ajustadas para dar conta de forma mais abrangente, menos militar e mais eficiente. Envolvem-se mais agências que estavam na periferia do esforço.
Que tipo de abordagem podemos esperar nos conflitos atuais?
Salvador Ghelfi Raza – Não só no Afeganistão, mas em vários outros países, podemos esperar maior envolvimento dos países, a qualificação das autoridades locais e a integração das agências de inteligência. Implica ouvir mais os altos escalões do país onde há a crise. E uma tentativa brutal de entender a cultura do povo local. Não há intenção de se impor a chamada doutrina de Washington.
Espera-se uma ação menos intervencionista dos EUA?
Salvador Ghelfi Raza – É mais participativa. Não vejo como menos intervencionista, pois aí é uma questão de matiz ideológico. Mas é um desenho mais integrador, que procura identifi car a cultura do país. Evitar erros como os cometidos na Bolívia. Você não pode chegar lá e destruir a coca. Ou acabar com o cultivo de papoula no Afeganistão. A economia desses países depende disso. Então, é preciso substituir esses cultivos. Da mesma forma, ao agir na estabilização, é preciso treinar a polícia e as Forças Armadas para que tenham autonomia. Isso tudo é novo. Antes, o governo americano vinha, ocupava e dizia “eu tenho a solução”. Não é que o americano ficou bonzinho, mas mais inteligente e humano.
Como atuar com agências tão estigmatizadas como a Usaid, que por décadas funcionou como fachada da CIA?
Salvador Ghelfi Raza – As agências de fomento serão de fomento e as de inteligência serão de inteligência. Haverá uma defi nição melhor das responsabilidades, sem a fusão de atribuições, mas apenas dos efeitos. Pretende-se, assim, resgatar a imagem delas, aproveitando a ênfase na diplomacia política de cooperação e integração.
Mas será difícil convencer muitos países, inclusive na América Latina, de que os EUA agem de boa-fé.
Salvador Ghelfi Raza – É um desafio. De qualquer maneira, a América Latina não está no foco de atenção americana, apesar de ter ganho projeção surpreendente. O Brasil precisa acordar dessa letargia metodológica intelectual, achando que para crescer basta deixar rolar. Nossas instituições estão obsoletas. Nosso pessoal militar tem que sofrer modernização drástica. Não basta comprar avião novo e submarino e manter a mentalidade dos anos 80. A política exterior está desarticulada da política de defesa, estamos numa panela de pressão e aumentando o fogo.
A crise em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos é um exemplo desse atraso, ao reanimar sentimentos de revanchismo e enfrentamentos que já deveriam estar superados?
Salvador Ghelfi Raza – É só um aperitivo do que vem pela frente. A tendência é piorar. Há crises internas e erros de política tão grandes que podem comprometer a imagem de um país que parou no tempo. O Brasil é um novo-rico. Os EUA já estão fazendo sua revolução para o futuro, e nós dando pulos para trás. Comprando espelhos, como índios. Qual a estratégia de segurança do governo brasileiro? Não tem. Como a política externa dialoga com a compra de mais caças? Como se espera que o submarino nuclear possibilite novas dimensões de dissuasão regional e como isso será usado pela diplomacia comercial? Ninguém sabe.
Fantástica entrevista. Parece-me que finalmente os teóricos da guerra irregular venceram os da guerra regular, ao menos a nível de governo do USA. Já não era sem tempo: as instituições de segurança que temos hoje no mundo todo refletem ainda a doutrina pós-SGM. Com o fim do comunismo, elas tornaram-se obsoletas, coisa que só foi realizada em 11/09/2001, evento após o qual se perdeu uma década com diversionismo (Iraque) e recalcitações (Afeganistão). Isso terá reflexos em todo o mundo. O que se depreende é que haverá uma nova “Escola das Américas” em termos de exportação de doutrina militar e de… Read more »
Interessante notar que ele tem um ponto de vista de um brasileiro mas com experiencia interna de como governos internacionais agem e tem duras criticas ao Brasil.
Sds!
Achei, no mínimo, engraçada a colocação deste senhor a respeito da política externa do Brasil. Pois o país tão enaltecido por ele deu um de gurizão metido a galo várias vezes na história e se deu mal……e parece que não prende (além de imaturo é burro). Tomou um pau na coréia, foi no vietnã e tomou pau de novo, se atirou no iraqe feito moleque de colégio e vai ter que sair de fininho antes de apanhar feio e, esperem pra ver como será o afeganistão…..Parece que o cara não olha pro umbigo….cara de pau! E o Obama, muleque de… Read more »
Prezados, “A política exterior (do Brasil) está desarticulada da política de defesa” Como podem notar, esta frase resume todo o pensamento e todas as ações em política externa dos governos americanos. Para eles, política externa = defesa e defesa = política externa. É a mentalidade deles já há décadas (política do Big Stick de Teddy Roosevelt, a forçação de barra do Franklin Roosevelt para entrar na 2ª Guerra, etc). É por isso que agem da maneira que agem. Não estou aqui criticando-os nem condenando-os. Apenas acho que esta não é a nossa maneira de ver as coisas – nem de… Read more »
PC em 18 jan, 2010 às 14:41:
“política externa = defesa e defesa = política externa”
Amigo PC, não é pra ser assim? Digo, a defesa não é pra ser a continuação da política externa?
Sds.
Não só atraso dos militares quanto na política do Brasil. Nossos velhos políticos também contribuem para o retrocesso. Temos um país com economia crescente, porém, com a política estagnada. E com o tempo, o mundo vai mudando, e nós cada vez mais atrasados. Grandes os EUA, dão grandes saltos políticos e estratégicos. Mas o Brasil é daquele que demoram para entender as coisas, mesmo passando a limpo em sua cara. Repito. O nosso maior mau é a política. Nossos governantes tem o pensamento na era Mesozóica. É como diziam alguns capitalistas dos anos 50, “precisamos de sangue novo”.Precisamos formar POLÍTICOS… Read more »
Prezado Felipe Cps, Acho que não. Acredito que a defesa deve ser um dos componentes da política externa (e interna tb) e não só apenas o meio e fim da mesma. Podemos acrescentar aí interesses comerciais, humanitários, integração pacífica entre os povos, etc…(bem utópico, reconheço) Da forma como eles fazem, mesmo os interesses comerciais estão atrelados à defesa – vide por exemplo o Iraque com petróleo, venda de armamento e reconstrução civil. Ademais, muito da diplomacia americana é feita com projeção de poder – geralmente o envio de uma frota. Peguemos agora o exemplo do Brasil: (dadas as devidas proporções)… Read more »
PC: Entendi mas discordo. Nos manuais clássicos de Direito Internacional a defesa é definida como a “ultima ratio” da política externa e se orienta por esta. A defesa é assim a continuação última da política externa, podendo e devendo ser acionada sempre que a diplomacia não atingir os objetivos perseguidos. O termo “defesa nacional” inclui, por exemplo, a economia e os interesses comerciais e, ultimamente, inclusive os meios cibernéticos (ou pelo menos deveria incluir, mas no Brasil…). Porque há um descompasso entre a política externa brasileira e a defesa? Porque a política externa (incluindo a defesa da economia e dos… Read more »
Mas será difícil convencer muitos países, inclusive na América Latina, de que os EUA agem de boa-fé. “Salvador Ghelfi Raza – É um desafio. De qualquer maneira, a América Latina não está no foco de atenção americana, apesar de ter ganho projeção surpreendente. O Brasil precisa acordar dessa letargia metodológica intelectual, achando que para crescer basta deixar rolar. Nossas instituições estão obsoletas. Nosso pessoal militar tem que sofrer modernização drástica. Não basta comprar avião novo e submarino e manter a mentalidade dos anos 80. A política exterior está desarticulada da política de defesa, estamos numa panela de pressão e aumentando… Read more »