Dez anos depois de criada, Defesa terá lei para se impor sobre as Forças Armadas
Projeto consolida poder civil sobre militar
Raymundo Costa
Após adiamentos sucessivos, o projeto de reestruturação do Ministério da Defesa deve ser enviado ao Congresso neste mês. Trata-se de um conjunto de medidas para fortalecer a Pasta criada há dez anos para entrosar Exército, Marinha e Aeronáutica sob um mesmo comando. Algumas propostas parecem simbólicas, mas são de grande importância na rotina de forças militares que de uma ou outra forma se confundem com a própria história do país. Representam, sobretudo, a consolidação do poder civil sobre o das armas.
A principal mudança será na Lei Complementar 97, que criou o Ministério da Defesa, em junho de 1999. Entre as medidas acertadas, o ministério ganha poder na confecção do orçamento militar. Atualmente, o orçamento das três Forças é “consolidado” no ministério. O novo texto legal dirá que a proposta será elaborada pelos comandos militares – Exército, Marinha e Aeronáutica – “em conjunto” com a Defesa. Na prática, isso já ocorreu este ano. Mas sem amparo legal e sim por uma conjugação política que se mostrou favorável ao ministro Nelson Jobim na relação com os chefes militares.
Quando assumiu o MD, Jobim procurou cercar-se de oficiais com efetiva representatividade na tropa, caso de generais oriundos do comando da Amazônia ou das tropas brasileiras estacionadas no Haiti. Esses são os dois dos cargos de maior prestígio, atualmente, nas Forças Armadas. Antes esse papel era desempenhado pelo 3º Exército, atual Comando Militar do Sul, devido à disputa da hegemonia regional com a Argentina. Mais de um presidente da República do ciclo dos generais passou pelo comando do 3º Exército.
Na proposta a ser remetida ao Congresso, o secretário do Estado Maior Conjunto do Ministério da Defesa será um oficial de quatro estrelas. Isso tornará o posto equivalente ao dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. “Não são mudanças fáceis em instituições com história e tradição”, disse o deputado José Genoino (PT-SP) ao Valor. O congressista acompanhou praticamente todas as fases de discussão e negociação do projeto de reestruturação do Ministério da Defesa, a curto prazo, e das próprias forças militares a médio e longo prazos.
“É uma demonstração de muito compromisso democrático: discute-se a política de defesa, reestruturação e a memória (caso dos desaparecidos), sem reivindicações corporativas, crise ou pronunciamento militar”, diz Genoino, referindo-se à alternância de golpes de Estado e governos democráticos que marcaram a paisagem política do país, desde a Proclamação da República, que há mais de 100 anos (1889) determinou o fim da monarquia pelo fio da espada.
É nesse sentido a determinação de que as prioridades do orçamento sejam aquelas estabelecidas na Estratégia Nacional de Defesa. O texto da Lei Complementar 97 remete à “Política de Defesa Nacional”. O fato de a palavra “nacional” vir em primeiro lugar não é mero acaso. Outra mudança a caminho: as operações militares deixam de ser “combinadas” e passam a ser “conjuntas”. O que parece eufemismo na prática significa que as manobras obedecerão a uma cadeia hierárquica que mistura integrantes das três Forças – hoje, Exército, Marinha e Aeronáutica mantêm, cada qual, a própria hierarquia, nessas operações.
Segundo fontes da área de defesa, o mérito do ministro Nelson Jobim foi ter envolvido Exército, Marinha e Aeronáutica na elaboração da Estratégia Nacional de Defesa – o antigo chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, contribuiu com algumas ideias, mas na realidade foi mais um redator do documento. Com os oficiais diretamente envolvidos, começou um processo de diálogo e convencimento, quase sempre muito difícil, cheio de arestas ainda não de todo aparadas.
Há mudanças que pareciam fora do alcance há apenas dez anos, quando o ministério foi criado. O melhor exemplo é o que trata da nomeação dos comandantes das três Forças. Atualmente eles são designados pelo presidente da República, “ouvido” o Ministério da Defesa. O novo texto será taxativo: os comandantes serão nomeados pelo presidente “por indicação” do MD.
Há outras mudanças que parecem incompreensíveis para o universo civil, mas são de muita valia no campo militar. Até agora, todos os promovidos a general são apresentados diretamente ao presidente da República. O novo ritual determina que eles sejam primeiro apresentados ao ministro da Defesa, que, em seguida, os apresentará ao presidente. Os comandantes também deixam de marcar encontros diretamente com o presidente.
Rabiscado, o projeto ainda é objeto de consulta aos diversos escalões das Forças Armadas. Em resumo, a estratégia de Jobim é ouvir, discutir e negociar com os militares. Basicamente, o que o ministro faz é o que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pensou quando criou o Ministério da Defesa: racionalizar e entrosar as três Forças, em vez de manter Exército, Marinha e Aeronáutica sob ministérios distintos e mesmo distanciados. Os militares da época aceitaram a indicação de um ministro civil, mas nunca efetivamente levaram a sério o Ministério da Defesa. Oficiais “encostados” eram rotineiramente designados para o ministério.
A reestruturação do Ministério da Defesa implicará a reestruturação das três Forças no médio e longo prazos. O atraso no envio de projetos ao Congresso demonstra que nem todas as arestas foram polidas. O Exército reclama que Marinha e Aeronáutica ganharam submarinos e caças, enquanto a Força terrestre não levou nada, até agora. A Defesa argumenta que é apenas uma questão de cronograma, o Exército será também atendido, na hora certa. Já a Marinha, que mantém elevada a autoestima de “Força intelectualizada” teme perder espaço para o Exército.
Ponto polêmico: as promoções, em cada Força, são enviadas diretamente ao presidente da República. Discute-se se cabe ao Ministério da Defesa interferir em um assunto considerado interno. De um modo geral, as mudanças acertadas estabelecem a autoridade do Ministério da Defesa sobre os comandos.
Haverá um reagrupamento geográfico das tropas na região Centro-Oeste, ponto equidistante da Amazônia, do Sul, do Nordeste e Oeste do país. A concentração no Sul e no Rio de Janeiro é considerada uma concepção ultrapassada. A rigor, o remanejamento de tropas já está em andamento, com discrição.
A brigada do Exército será a unidade de excelência nessa nova configuração. Deve ser acantonada nas mediações de Brasília, assim como a base aérea. Jobim queria transferir a Escola Superior de Guerra (ESG) para a capital da República. Houve reação e o ministro terá de se contentar com a criação de um campo avançado da ESG, em Brasília. A ideia é formar uma elite de intelectuais de defesa.
Na concepção, a política de defesa prevê o emprego das Forças Armadas como poder dissuasório. Mas flexíveis o bastante para se transformar em forças de ataque, em caso de necessidade.
O projeto em curso tem repercussão internacional, como a parceria privilegiada com a França. Ainda é nítida na retina dos militares brasileiros as dificuldade que os argentinos enfrentaram na guerra das Malvinas, quando foram isolados pelas forças da Otan (EUA à frente). Os argentinos nem sequer conseguiam comprar peças de reposição para o míssil exocet, que fez estragos nas forças navais inglesas, no início do conflito.
“Parceria estratégica na compra de equipamentos. Nenhuma Força compra isoladamente submarinos, helicópteros e, claro aviões – a parceria com a França permitiu que eles oferecessem mais que o Estados Unidos e Rússia”, afirma um interlocutor de Jobim. A Rússia, além da instabilidade política, não não tem estabilidade em relação à manutenção de equipamentos. Os Estados Unidos, por seu turno, têm restrição à transferência de tecnologia. O avião de treinamento supertucano, por exemplo, fabricado pela Embraer, não pode ser vendido a certos países porque tem tecnologia americana. A França não tem vetos. Acima de tudo, a França tem assento no Conselho de Segurança Nacional da ONU, um lugar cobiçado e perseguido pelo governo Lula.
Os projetos para reequipar as Forças Armadas devem ter em vista o programa nacional de desenvolvimento. A tendência do governo Lula é favorecer empresas nacionais, inclusive incentivar a criação de um parque industrial de defesa. O mote é que toda linha de produção militar tem uma interface civil. Quase uma centena de empresas já atendem a projetos em curso.
Além da Lei Complementar 97, a reestruturação da Defesa requer decretos a serem baixados pelo presidente da República, mas sobretudo mudanças na Lei 8.666, que trata das licitações. O objetivo é permitir aos militares contratar, sem licitação, empresas que julgarem estratégicas para o desenvolvimento de produtos sensíveis. Há promessa de transparência em compras feitas sem licitação, o que é incomum nesse mercado, para dizer o mínimo.
Uma empresa do grupo Fiat, a Iveco, por exemplo, desenvolve em Minas Gerais o carro de combate sobre rodas Urutu 3. Encomenda do Exército. Outra empresa desenvolve um equipamento de radar móvel, que pode ser transportado pelos soldados. “Busca-se nas Forças Armadas necessidades que possam ser usadas para estimular a atividade econômica”, disse fonte ligada ao Ministério da Defesa.
Jobim tem a cumplicidade das Forças à medida que o governo Lula promete dinheiro para equipar Exército, Marinha e Aeronáutica. O Ministério da Defesa na criação de um fundo para assegurar os recursos ou na criação de uma regra que impeça o contingenciamento de recursos previstos no Orçamento Geral da União. As Forças serão beneficiadas com o dinheiro do pré-sal que será destinado à ciência e tecnologia; mas especificamente a Marinha terá dinheiro para o submarino nuclear.
A lei que permite à Aeronáutica abater aeronaves também será mudada. Atualmente, a Força Aérea pode abater ou fazer pousar um avião, mas não pode prender tripulação e passageiros, o que é atribuição da Polícia Federal, no caso de traficantes. Semana passada, depois de disparar rajadas de metralhadoras de aviso, a FAB conseguiu que um pequeno avião pousasse nas mediações de Brasília. Acionada, a PF chegou mas encontrou apenas o avião carregado de drogas: a tripulação fugira. Com a mudança, os militares também poderão prender traficantes, que desde a promulgação da Lei do Abate trocaram boa parte das rotas aéreas pela rede de rios e estradas secundárias da Amazônia.
FONTE: Valor Econômico, via Notimp
Uma excelente análise, bastante realista, das mudanças em curso.
Infelizmente, o autor pouco fala sobre o fato de que a tal END até agora é apenas mais um papel, e que de todas as alardeadas promessas de reequipamento a única cujo contrato já foi assinado, é o submarino nuclear e estaleiro da DCNS, que escolheu sem a menor cerimônia, e sem licitação alguma, a Odebrecht para a obra, obviamente para que esta possa, como empreiteira oficial do PeTralhotarismo, alimentar de recursos os cofres do ParTido nas eleições do ano que vem.
Enfim, segue a politicalha em matérias que deveriam ser projetos de ESTADO e não de governo. E o pior não é isso: o pior é que ano que vem nada será votado, e no outro, qualquer que seja o vencedor do pleito presidencial, tudo será parado e recomeçará do zero.
Sds.
Boas mudanças.
Concordo que os militares devem ser submissos ao poder civil, inclusive por questão de democracia.
Retirar bases do Sudeste e levar para o Centro-Oeste e Norte parece uma decisão bem acertada.
Vamos esperar que as mudanças continuem e que os investimentos venham, e que passe no plenário as mudanças que impedem contigenciamento das verbas militares.
As coisas estão mudando sim, graças a DEUS, e para desespero dos PSDBistas e dos que só sabem reclamar e chorar, sem analisar os fatos que estão acontecendo.
BRASIL!!!
Flavio De Paula em 03 nov, 2009 às 11:06:
Flávio, vale lembrar que o Ministério da Defesa foi uma criação do FFHH, do PSDB. Como disse o autor do texto, FFHH há dez anos atrás conseguiu essa sua “vitória histórica”…
Apenas fazendo o contraponto.
Sds.
Felipe Cps em 03 nov, 2009 às 10:08
“Infelizmente, o autor pouco fala sobre o fato de que a tal END até agora é apenas mais um papel (…)”
Como a maioria das leis desse país. Seria cômico se não fosse trágico.
“(…) submarino nuclear e estaleiro da DCNS, que escolheu sem a menor cerimônia, e sem licitação alguma, a Odebrecht para a obra (…)”
Antes que tu me coloques no paredão, já digo que não é uma defesa, é só uma observação: tecnicamente, quem tinha a prerrogativa de escolher a “parceira” brasileira para construção eram os franceses.
Se não estou enganado, a única exigência é que a empresa fosse n% brasileira (substituia esse n por um valor que não lembro agora de cabeça).
Ou seja, não havia necessidade de licitação. Esses caras não brincam em serviço. 🙂
[]s
Wilson “Giordani” de Souza em 03 nov, 2009 às 18:39:
“tecnicamente, quem tinha a prerrogativa de escolher a “parceira” brasileira para construção eram os franceses.”
É. E quem lhes deu essa “prerrogativa”? 🙂
Vc tá certo: esses caras não brincam em serviço.
Abs.